segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Matéria enviada ao colunista Paulo Sant'Ana no dia 23 de janeiro de 2010, sobre o problema da supertolação das emergências hospitalares em Porto Alegre.
Prezado Paulo Santana:

Li tua coluna. Com todo o respeito que tenho pelo Secretário Osmar Terra, amigo meu de muitos anos, continuo insistindo que a solução para o sistema de saúde de Porto Alegre (e do RS), não vai ser resolvido com mais 03 ou 04, 10 ou 20 UPAs.
Primeiro porque o sistema está totalmente mercantilizado. O próprio sistema público hoje não é mais do que subsidiário do sistema dominado pelo "mercado".
Segundo, caso não se altere a estrutura do sistema, que implica numa mudança de paradigma, para melhorar um pouco que seja, tem que ampliar e muito a Atenção Básica (Programa de Saúde da Família ou outras modalidades que queiram criar). E elas tem que ser resolutivas, isto é, resolver de 85 a 90% dos casos que recebe. As UPAs, de uma certa forma, são uma tentativa de aliviar as grandes emergências, criando estruturas menores, descentralizadas. O problema é que a questão não é de emergência, é de atenção integral, de atenção básica.
Terceiro: O problema "emergencial" das emergências poderia, em boa parte, ser resolvido, se o gestor municipal (pode ser em acordo com o Estado e a União), fizessem uma AUDITORIA para valer, nos grandes hospitais filantrópicos. Repito, no CNES (Cadastro Nacional de Estabelecimento de Saúde) o Hospital Mãe de Deus, por exemplo, aparece com 48 leitos ofertados ao SUS. Nunca ví. Mesmo que eles existam e estejam em funcionamento, o problema é que o Hospital deveria colocar 60% dos seus leitos e de TODOS OS SEUS SERVIÇOS a disposição do SUS. Isto significa 142 leitos e mais todos os serviços (ambulatório, exames complementares, etc,etc,etc,). Eu cito o Mãe de Deus, porque ele é o que menos atende o SUS, notoriamente. A AUDITORIA, vale para todos os filantrópicos.
Quarto: a gestão municipal em Porto Alegre é calamitosa. Nos últimos 10 anos houve uma redução de 350 funcionários considerando apenas o Hospital de Pronto Socorro e de 742 funcionários municipalizados. É uma redução de quase 1000 funcionários, dente os quais 200 médicos.
Quinto: estamos estudando a possibilidade de ingressar no Ministério Público com uma representação, questionando essa situação.
Por último, não sei de onde o Secretário Osmar sacou os números onde ele compara os custos do Grupo Hospitalar Conceição e do Hospital de Clínicas com os 300 hospitais estaduais". Eu acho que são estruturas de complexidade totalmente diferentes, não comparáveis.
Em todo o caso, quero te dizer que eu não trocaria, em nenhuma hipótese, os dois primeiros pelos 300 hospitais estaduais. Fico com o GHC e com o Clínicas.

Um grande abraço
Lucio Barcelos
Médico Sanitarista
Ex-Secretário de Saúde de Porto Alegre
Consultor do Ministério da Saúde
Primeiro Suplente de Vereador do P-SOL

sábado, 23 de janeiro de 2010

Publicado na Edição do dia 23 de janeiro de 2010 do jornal Zero Hora - Seção ARTIGOS

Definição de responsabilidades, por Lucio Barcelos *

A Zero Hora de 19 de janeiro apresentou uma matéria intitulada “Superlotação no Conceição revolta médicos”.

O problema da superlotação do serviço de emergência do Grupo Conceição não é propriamente uma novidade. A novidade, neste caso, é o “excesso” de superlotação. O que, de acordo com o relato da matéria, foi causa de situações inusitadas, como a agressão a um funcionário, revolta dos familiares dos pacientes, culminando com a revolta dos médicos.

Esse quadro nos remete a uma reflexão sobre a divisão de responsabilidades entre os gestores do SUS.

Primeiro: a gestão do sistema de saúde do município de Porto Alegre é de inteira responsabilidade do gestor municipal. Cabe a ele, e somente a ele, a regulação de todos os serviços de saúde existentes nos limites do território do município. Sejam eles públicos ou privados, quer sejam contratados ou não pelo Sistema Público. A isso se chama Comando Único do Sistema de Saúde. Mesmo que a gerência de alguns serviços seja federal ou estadual, como é o caso do Grupo Conceição, a gestão é do município. Os mecanismos que ele utilizará para garantir essa regulação podem ir desde a abertura de novos leitos (para dar vazão à superlotação das emergências), até a compra de leitos em estabelecimentos privados não contratados pelo sistema, quando esse for o caso.

Segundo: o principal problema a ser resolvido, no caso das superlotações, pelo que se discute, é a insuficiência de leitos disponíveis para o SUS em Porto Alegre. Creio que essa seja uma simplificação perigosa. O problema é um tanto quanto mais complexo. Passa por uma mudança mais profunda no modelo de atenção que temos hoje.

Em todo o caso, naquilo que diz respeito à redução de leitos, penso que existem fatos pouco esclarecidos, para dizer o mínimo, envolvendo esse assunto.

Por exemplo: alguém acredita que os grandes hospitais privados, detentores do certificado de filantropia, ofertam 60% de todos os seus serviços para o SUS? Eu não acredito. Pelas minhas contas, baseadas no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), e considerando apenas os hospitais Moinhos de Vento e Mãe de Deus, que notoriamente não atendem população SUS, por baixo, eles deixam de oferecer 318 leitos que deveriam estar disponíveis para o SUS.

E esses leitos fazem toda a diferença. A população sofrida do SUS que o diga.

* Médico sanitarista, consultor do Ministério da Saúde

domingo, 10 de janeiro de 2010

Saúde, a prevalência do abandono, por Lucio Barcelos *

No campo da saúde pública, no qual tudo e nada acontece ao mesmo tempo, creio que deveríamos abrir uma pequena janela para refletir sobre certos fenômenos que até hoje persistem em seu interior.

São fenômenos do quotidiano, que, pela sua persistência no tempo e pela sua aparente “naturalização”, perdem, gradativamente, sua real importância e dimensão. Em certa medida, inscrevem-se no mesmo processo social regressivo e perverso que tenta transmitir para os cidadãos comuns a ideia de que “o mundo é assim mesmo” e que temos que nos conformar com as “coisas como elas são”: assim, as manifestações de embrutecimento e empobrecimento da sociedade, que afetam os jovens e as mulheres de uma forma mais direta, e cujas expressões mais dramáticas são a violência e o desemprego, espelham esse tipo de “desenvolvimento” que a sociedade atual é capaz de oferecer. Na área da saúde pública (da qual são dependentes mais de 140 milhões de brasileiros), tais manifestações apresentam-se de forma mais grosseira e se revestem de um componente de atraso social quase incompreensível. O descaso é gritante.

Diariamente, milhares de pessoas são submetidas a situações de absoluto constrangimento, como a espera por longas e intermináveis horas para conseguir uma mera consulta médica. Ou a espera por meses – senão anos – para ter acesso a um exame ou uma consulta especializada ou, ainda, a uma internação hospitalar. Ou viajar centenas de quilômetros, até ser “contemplado” com uma consulta em um dos grandes hospitais da Capital. Ou ser “emergencializado” e ficar um longo tempo (dias ou até semanas) em uma cadeira ou maca até que seja liberado um leito da especialidade que o cidadão necessita; ou recorrer à Justiça para obter um medicamento que o sistema, legalmente, teria que fornecer.

São, todos, sintomas típicos de um profundo desrespeito aos cidadãos. Ou alguém tem outra explicação? Afinal, nós estamos em pleno século 21, quando todos se orgulham dos assombrosos avanços tecnológicos que nossa sociedade já alcançou. Será que esta “sociedade” já não deveria ter desenvolvido uma tecnologia capaz de evitar essa arcaica humilhação a que são forçados os cidadãos para ter acesso a direitos tão elementares como uma consulta médica?

Eu não acredito. Tenho a convicção de que os “governos” poderiam solucionar essa situação desrespeitosa, deixando de lado a demagogia e agindo com genuína vontade de resolver a questão.
* MÉDICO SANITARISTA