quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Romper com a lógica privada na Saúde: Este é o nosso verdadeiro desafio.

Muito tem se falado e debatido sobre a crise da saúde (ou caos, como preferem alguns), em discussões que invariavelmente desembocam nas mesmas questões: mais recursos e gestão mais eficiente para a saúde. Passa-se ao largo, todavia, do verdadeiro debate que deveria ser travado neste campo.
A crise da saúde, caracterizada pelas brutais dificuldades de acesso da população aos serviços ambulatoriais e hospitalares do sistema único - com todas as perdas e sofrimentos que isso possa significar - não é determinada centralmente pelo fato de, historicamente, o sistema notabilizar-se por um financiamento insuficiente e uma gestão ineficiente.

Ainda que se admita que o mencionado binômio “mais dinheiro x mais gestão” possa representar uma parcela dos reais problemas da saúde, ele é utilizado, na verdade (ao contrário do que advogam a quase totalidade das instituições ou personalidades que militam no campo da saúde), muito mais, como um subterfúgio e como elemento de distração para não discutir àquilo que está na essência do problema: o sistema de saúde que existe concretamente e que funciona (ou não) na vida real mantém alguma similitude com o Sistema de Saúde previsto na Constituição? Está ele estruturado como um sistema nacional de saúde, fundado em instituições de propriedade pública e dotado de um funcionamento que se apóia numa lógica de satisfação do bem estar da população? Qual a nossa resposta para isso? Evidentemente, é um categórico não!

É inegável que a regulamentação do Sistema Único de Saúde, produto de mobilizações dos trabalhadores no final da década de 80, é uma conquista da sociedade brasileira. O SUS, constitucionalmente, está definido como um direito universal e democrático de todos os cidadãos e um dever do Estado. Significa, portanto, um grande avanço em relação ao período anterior, onde somente os trabalhadores formais (os com carteira do trabalho assinada) tinham direito à assistência à saúde, ficando legalmente desprotegidos, todos os trabalhadores informais, desempregados e demais categorias não formais. E é exatamente a efetiva implantação desse sistema que está em questão. De 1988 até hoje, passados 20 anos, houve algum progresso no sentido de alterar qualitativamente a relação de total e absoluto domínio do setor privado da saúde sobre o setor público?
O Sistema Único de Saúde desde sua instituição, no início dos anos 90, caracteriza-se pelos seguintes aspectos fundamentais:

I – os serviços hospitalares e ambulatoriais, de média e de alta complexidade e de alto custo, estão nas mãos da iniciativa privada. A título de exemplo, no país, 64% dos leitos hospitalares são privados. No Rio Grande do Sul, Estado onde militamos, este percentual sobe para 75%. Esta mesma distribuição proporcional repete-se nas áreas de apoio diagnóstico e terapêutico. Na área hospitalar, há muitos anos disseminou-se a figura das chamadas “entidades filantrópicas”. São instituições privadas, beneficiadas com isenções tributárias, que fazem questão de confundir seu caráter privado, e que, em sua grande maioria, utilizam-se de todos os subterfúgios possíveis para restringir o acesso dos usuários do SUS, estabelecendo portas de entradas diferenciadas; mascarando suas contabilidades, entre outras formas “criativas” de burlar o sistema;
II - o mesmo fenômeno acontece na área de produção, distribuição e venda de medicamentos e de equipamentos, que sabidamente, mobiliza poderosos interesses econômicos, envolvendo grandes empresas multinacionais do setor. Este segmento do sistema é dominado, quase que integralmente pela indústria privada da saúde;
III – tão ou mais grave do que a situação caracterizada acima é a constatação de que nos últimos anos consolidou-se o processo de apropriação do Estado pelo mundo dos negócios. Significa dizer que os processos internos de gestão e de funcionamento das instituições estatais se constituem a partir de uma lógica tipicamente privada, assimilando elementos próprios dela, tais como: pagamento por produção; contratos de meta; avaliação e premiação por desempenho, entre outras. Não existe, portanto, um “modelo de gestão” baseado na eficácia e na efetividade, fundadas nos princípios do bem estar da população. Um exemplo típico de manifestação deste fenômeno evidencia-se na absoluta incapacidade do sistema – sua fração estatal – em exercer sua função reguladora sobre a fração privada. Portanto, quem de fato regula o sistema é o setor privado, salvo honrosas exceções. Os chamados “complexos reguladores” do SUS, não passam, na verdade, de Centrais de Marcação ou de Agendamento de Consultas, Exames e Internações. Não está a se dizer que essas centrais não sirvam para nada, mas sim que estão longe de consittuir instrumentos de efetiva regulação do prestador privado. Dá-se o mesmo com o processo de ressarcimento dos custos do SUS pelas operadoras de planos privados de saúde. Nenhum desses Planos cumpre a norma que obriga o ressarcimento; ao contrário, escudam-se em ações judiciais, as mais variadas, para não pagar ao SUS os gastos que dispendidos com seus segurados.
IV - um processo semelhante tem ocorrido, ao longo dos anos, com o chamado “controle social” que deve ser exercido pelos Conselhos de Saúde, com poder deliberante. O processo de cooptação dessas instâncias pelo “Estado privado”, descaracterizando suas reais funções de controle da população sobre o sistema, constitui-se em mais um grave retrocesso, retirando do sistema o pouco de controle que a população exercia sobre o mesmo, em seu início.
V – Assim, o que temos na vida real é um sistema de saúde essencialmente privado. Em primeiro lugar, porque a sua maior fração é de propriedade do setor privado e, em segundo lugar, porque sua fração pública é ficticiamente pública, não passando de um apêndice, correia de transmissão da indústria privada.
Então, é sob estas condições que hoje se dá o debate nacional por mais financiamento para a saúde.
É possível apoiar a luta por mais dinheiro para a saúde sem caracterizar, previamente, para onde este recurso esta sendo direcionado? É possível apoiar uma luta dirigida, entre outras, pela nobre “bancada da saúde” defensora intransigente dos interesses corporativo-privados? É possível apoiar uma luta por mais financiamento, sem ter a menor idéia do quanto hoje é gasto em saúde, desnecessáriamente, premidos e induzidos pelos interesses privados. Alguém tem idéia do quanto de medicamentos, de equipamentos, de internações e tantos outros procedimentos são realizados em função do interesse do mercado e não da saúde dos cidadãos.
VI – nesse terreno, como aliás, nos demais todos, a política capitaneada pelo Governo Lula é a de acelerar o processo de sucateamento e de entrega da saúde para o setor privado. Nestes 05 anos e 1/2 de governo, não avançou um milímetro sequer na direção de reverter essa situação de domínio absoluto do setor privado sobre o setor público na saúde. Ao contrário, reforçou as políticas de precarização das relações de trabalho; de terceirização da produção de serviços, na linha das Parcerias Público Privadas; das Organizações Sociais (OS), das Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPS), da criação de propostas “moderníssimas”, ao estilo Fundações Estatais de Direito Privado, que não passam de um arremedo de privatização, embrulhados em um pacote mais vistoso que os anteriores;
VII – Portanto, a tarefa que se coloca para nós, a curto prazo, é iniciar ou , se preferirem, intensificar e ampliar um movimento que tenha como objetivo claro e insofismável a organização, mobilização e luta dos trabalhadores e das classes médias a favor da construção de um SISTEMA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICO, FUNDADO EM INSTITUIÇÕES DE PROPRIEDADE DO ESTADO, nos mesmos moldes dos sistemas do Canadá, da Inglaterra, de Cuba e de outros países que adotem sistemas semelhantes.
É hora de dar um basta à continuidade de um SUS privado, essencialmente financiador dos interesses privados.