sábado, 27 de março de 2010


Quem não quer ver?

O Secretario interino de Saúde de Porto Alegre, em artigo publicado nessa seção, cita algumas ações e iniciativas meritórias, assumidas na gestão do Secretário Elizeu Santos, tomando-as para si e, ao mesmo tempo, aproveitando para denunciar, “alguns que não querem ver” essas ações.

Eu, com todo o respeito ao atual secretário, considero-me parte desse grupo “que não quer ver”, porque, mesmo concedendo que a administração atual tenha realizado algumas ações pontuais, afirmo que essas ações não fazem parte de um processo de planejamento global do sistema de saúde de Porto Alegre. E é disso que se trata. Colocar Porto Alegre em um processo de conversão do sistema de saúde, investindo todas as suas energias e recursos, na constituição de uma estrutura própria da instituição.

A Secretaria de Saúde de Porto Alegre, trabalha com um déficit de mais de 1.000 (hum mil) funcionários dentre os quais mais de 200 médicos. A grande maioria dos médicos concursados, que foram chamados pela Secretaria, recusaram-se a assumir seus cargos em função dos baixos salários atualmente pagos.

O Hospital de Pronto Socorro, já disse e repito, tem um déficit de 350 funcionários (70 médicos) e os pacientes continuam a ser atendidos nos corredores e na sala do gesso e a área física do hospital continua em péssimas condições.

As emergências continuam superlotadas, com o problema momentâneamente agravado em função da superlotação das UTIs Neonatais. Os paciente permanecem nessas emergências dias ou até semanas. Não deveriam permanecer mais do que 12 a 24 horas, de acordo com as normas técnicas. E, para variar, ninguém se propõe a auditar os grandes hospitais filantrópicos.

A falta de medicamentos, os mais comuns, é vergonhosa na imensa maioria das farmácias. E os funcionários não cansam de denunciar as suas más condições de trabalho.

As reformas das Unidades Sanitárias deveriam incluir alguma idéia decente de como acabar com as filas, onde os cidadãos, via de regra, pobres e idosos ficam desde as primeiras horas da madrugada até o final da manhã, para conseguir uma consulta médica. E quando chegam ao balcão de atendimento, só tem um funcionário para atendê-los.
Caso a Secretaria esteja aplicando recurso acima do disposto na Emenda 29 (15% das RTL), e isso tem acontecido historicamente, cabe ao gestor municipal buscar formas de negociar junto aos gestores do Estado e da União, para exigir mais recursos, tendo em vista que Porto Alegre atende uma parcela significativa da população da região metropolitana de Porto Alegre e do interior do Estado.

Lucio Barcelos – Médico Sanitarista – Consultor do MS

POA 24/março/2010.

sexta-feira, 5 de março de 2010

Artigo publicado na edição da Zero Hora de 05 de março de 2010.

Estado, para quem? por Lucio Barcelos*

Então, é assim que funcionam as coisas: o governo do nosso Estado retém R$ 164,7 milhões de transferências da União, que deveriam ser gastos em saúde (matéria da ZH do dia 3 de março), aplica esse dinheiro no mercado financeiro, para render juros e garantir o malfadado “déficit zero” e deixa a população, que já está sendo atendida precariamente, em situação mais crítica ainda. Nunca é demais relembrar que o governo do Rio Grande do Sul é o que aplica os menores percentuais (em torno de 5%, quando deveria aplicar 12%) de seu orçamento em saúde. A combinação desses fatos permite que se comece a entender por que as emergências dos hospitais vivem superlotadas, por que é tão difícil conseguir acesso a exames complementares, leitos especializados e a medicamentos no sistema público de saúde do Estado.

Para dificultar ainda mais a vida da população que depende exclusivamente do SUS, a Secretaria da Saúde de Porto Alegre, que nos últimos tempos se especializou em terceirizações e em negócios mal explicados, não nomeia e nem contrata pessoal próprio já faz muito tempo. Não é por outra razão que a secretaria (não) funciona com um déficit de mais de mil funcionários, dentre os quais mais de 250 médicos.

É um quadro desolador, que deve fazer com que a população se questione sobre a real necessidade de um Estado que, nos dois primeiros meses deste ano, arrecadou R$ 200 bilhões (esta é a soma da arrecadação de impostos pelo governo federal, pelos governos estaduais e municipais) e não consegue, minimamente, resolver os problemas mais elementares da sociedade, como é o caso da superlotação das emergências hospitalares, dos episódios de violência urbana e dos surtos epidêmicos – o mosquito da dengue, segundo autoridades da área, será vitorioso sobre a sociedade, até que se consiga criar uma vacina contra o mesmo. É inacreditável que um argumento desse tipo seja usado por autoridades sanitárias. Significa dizer que, em pleno século 21, não temos meios e técnicas capazes de controlar o mosquito da dengue.

Assim, reforça-se na população a ideia de que o Estado é um aparelho incompetente, pesado, corrupto e desnecessário. Uma triste e incontestável verdade que se choca diretamente com os interesses gerais da população. Alguém deve estar lucrando com isso. Certamente, não é a grande maioria da população.
*MÉDICO SANITARISTA, CONSULTOR DO MINISTÉRIO DA SAÚDE

segunda-feira, 1 de março de 2010

Saúde se faz com gente.

Hoje pela manhã, tive a oportunidade de, mais uma vez, visitar as dependências do nosso
Hospital de Pronto Socorro. Descrever as péssimas condições de trabalho dos profissionais, o “amontoamento” de pacientes nas enfermarias e nos corredores, a deterioração das instalações físicas e o uso de equipamentos totalmente obsoletos (os aparelhos de RX têm mais de 20 anos – são da era pré-digital), não é suficientes para que se entenda a extensão do dano que a atual administração está causando àquele serviço.
A seguir, apresento alguns números que são bastante ilustrativos do que se disse acima: hoje, o hospital trabalha com um déficit de aproximadamente 350 trabalhadores. Esse número representa praticamente um terço do total de funcionários que eram lotados no hospital. Deste total, 77 são médicos, 15 enfermeiros, 126 técnicos de enfermagem, 13 técnicos em radiologia, 15 motoristas - SAMU, 09 operadores de rádio transceptor, 04 técnicos em segurança do trabalho e outros profissionais administrativos. A redução de médicos é mais sentida nas áreas de traumato-ortopedia, oftalmologia, otorrinolaringologia, anestesiologia e cirurgia plástica. Os traumato-ortopedistas, que já foram 38, hoje estão reduzidos a 19 (50% a menos), sendo que alguns estão aguardando sua aposentadoria. De 13 anestesistas nomeados, não resta nenhum, pois todos consideraram os salários incompatíveis com suas funções.
De um ponto de vista mais geral, a situação é praticamente a mesma: dos funcionários “municipalizados” (cedidos pela União e pelo Estado) que no ano de 1996 eram 1.731, hoje restam 989. Há, portanto uma redução de 742 funcionários, dentre os quais 180 médicos. Deste total, quantos foram repostos pela Prefeitura? Fizemos essa pergunta, oficialmente para a Prefeitura e não obtivemos resposta
O que importa discutir, para além do déficit de pessoal, que por si só já é um importante problema, é o significado desse processo de desmantelamento, no ambiente de trabalho, para aqueles que ainda restam na instituição. Há, no geral, um sentimento de abandono, desestímulo e de desvalorização. O que vale é que, até o momento, ainda prevalece a relação de dedicação e compromisso dos trabalhadores para com a saúde da população. Esperemos que ela perdure até o dia em que os governantes priorizem, de fato, o sistema público de saúde.

Lucio Barcelos
Médico Sanitarista – Consultor do Ministério da Saúde
Fevereiro 2010.
Emergências do SUS: mais do mesmo!

Das duas uma: ou bem alguns dirigentes da categoria médica não entendem um ovo daquilo que diz respeito à conformação do sistema (que deveria ser) público de saúde, ou bem se fazem de tontos. Qualquer que seja a hipótese verdadeira é de deixar todo o mundo profundamente indignado.

A repetição dos já surradíssimos argumentos de que o problema da superlotação das emergências hospitalares é motivado pela redução de leitos e que, portanto, existe a necessidade de ampliá-los, e que faltam investimentos, e que tem um jogo de empurra, e que o Hospital Conceição “insiste” em manter suas portas abertas é, no mínimo, patético e uma ofensa a inteligência de qualquer cidadão medianamente informado.

Primeiro, e aqui sou abrigado a me repetir, o problema da superlotação não é, nunca foi e nunca será, do ponto de vista do sistema, um problema estritamente de falta de leitos. Ele pode até aparecer como tal. Aliás, se fosse assim, bastaria que os gestores do Estado e do Município, uma vez na vida, se enchessem de coragem e cobrassem os leitos que os grandes hospitais filantrópicos devem ao SUS. Mas, todo mundo se faz de maluco, ou de surdo. Cada um olha para um lado, faz de conta que nada foi dito, e a vida continua. Uma droga para a população, mas continua.

O problema das emergências dos hospitais de Porto Alegre, ou de qualquer outra grande cidade do país, vou me repetir mais uma vez, só será resolvido caso os governantes resolvam criar vergonha na cara e fazer aquilo que a Constituição Federal determina, isto é, promover uma reversão do atual sistema de saúde, que não é público e nem único, para um sistema de saúde estatal, cuja execução é de responsabilidade direta do Estado. Sem intermediários e sem conversa fiada de que não tem dinheiro. Uma vez tomada essa decisão política, poderemos começar a conversar sobre organização regionalizada, atenção básica resolutiva, regulação do sistema, hospitais qualificados, produção de medicamentos e equipamentos, etc., etc., etc.
Enquanto não houver essa reversão, vamos ficar ouvindo a mesma choradeira de sempre, que já estamos ouvindo a mais de 20 anos, que nada resolve e penaliza cada vez mais a população que necessita de atenção do SUS. O problema do sistema é de falta de dinheiro e de gestão. Conversa mole para boi dormir.

Lucio Barcelos
Médico Sanitarista – Consultor do Ministério da Saúde
POA, fevereiro de 2010.
SUS: sinais trocados

Está praticamente consolidada na opinião pública, a idéia de que aquilo que é público é de má qualidade, de difícil acesso, corruptível e de alto custo.

Essa imagem equivocada, que vem sendo construída ao longo dos anos, evidentemente, não é gratuita e serve a propósitos muito bem definidos.

Na área da saúde, que é o objeto de nossa preocupação, o mais estranho é que, na maioria das vezes, são os próprios gestores públicos os primeiros a defender essa tese e a enaltecer os serviços privados de saúde. Com qual propósito?

A primeira hipótese é a de que sejam trânsfugas, ou seja, gestores públicos que servem aos interesses do setor privado. São pessoas que entendem que o Estado existe para sustentar o setor privado e que, infelizmente, constituem a imensa maioria.
O que está em questão, portanto, não é a capacidade e/ou a competência do Estado como provedor de serviços de qualidade, e sim, as políticas e as prioridades dos governantes (gestores) de plantão.

O Estado, como é do conhecimento de todos, vive da arrecadação de tributos da população. No Brasil, anualmente, são arrecadados, somente pelo governo federal, aproximadamente um trilhão de reais, dinheiro mais do que suficiente para prestar uma saúde de qualidade à população. E o mais triste desta história é que, justamente a população mais pobre do país – aquela que mais necessita de assistência à saúde e ao mesmo tempo é a mais discriminada no acesso a esses serviços – é a que mais paga impostos, proporcionalmente

Neste contexto, surgem os supostos gestores públicos, argumentando que o Estado não tem dinheiro suficiente para cumprir esse objetivo, uma grande falácia que pode ser desmantelada da seguinte forma:

Some-se todos os subsídios diretos e indiretos que o Estado concede às instituições privadas de saúde (planos, seguradoras, filantrópicos e contratados), invista-se esse valor na estruturação de serviços próprios do Estado (construção, contratação de pessoal, compra de equipamentos) deixando o setor privado funcionar de acordo com as regras do tão decantado “livre mercado”, sem as benesses do Estado.

Assim, o Estado prioriza o uso dos recursos arrecadados para prestar serviços de qualidade para a população e o setor privado, sem subsídios, funciona de acordo com as regras do mercado.

Para concluir, sejamos otimistas e apostemos no surgimento de governantes que priorizem os “interesses públicos” antes de quaisquer outros interesses.

Lucio Barcelos
Médico Sanitarista – Consultor do Ministério da Saúde
Fevereiro 2010.