domingo, 23 de outubro de 2011

Um governo digital, que tal?

Li o artigo, recentemente publicado pela ZH e assinado pelo Secretário Estadual da Saúde. Não imagino de quem seja o texto, mas de qualquer sorte, o resultado é o mesmo. Trata-se de uma farsa. Uma tentativa de tornar complexo aquilo que é de uma simplicidade meridiana. Diz o artigo que “o tema do financiamento da saúde é decisivo, mas seria equivocado reduzir o problema a uma questão exclusivamente orçamentária”. E segue dizendo que “há um amplo conjunto de questões que podem, e devem, se debatidas pelos usuários do sistema de saúde, fornecendo aos gestores públicos subsídios para a tomada de decisões capazes de melhorar significativamente o atendimento à população”. Eureka! Fez-se a luz. Os gravíssimos problemas do sistema público de saúde - históricos, de décadas - existem, porque até esse momento, nenhuma mente iluminada tinha sido agraciada com a genial idéia de conceder canais eletrônicos para a população se manifestar, fornecendo “subsídios” aos confusos e apalermados gestores públicos.

O governo Tarso, e seu brilhante secretariado, encontraram a solução. A cidadania será escutada e os problemas serão resolvidos. Sinto-me profundamente aliviado. Preparem-se. Em novembro o Gabinete digital do governo do Estado vai lançar o programa “o Governador Pergunta” e os problemas da saúde serão resolvidos. Pena que esqueceram que a imensa maioria dos “usuários” do SUS é pobre ou miserável e não deve ter acesso quotidiano aos meios digitais. E que a “participação popular” está garantida pela lei, através dos Conselhos de Saúde (deliberativos) que existem nos municípios, Estados e em âmbito nacional.

Afora isso, será mesmo necessário que a população tenha que dizer ao Governador que ele tem que cumprir o que determina a Constituição Federal e a Emenda Constitucional 29, sem mascarar o orçamento? Será que o governo já não deveria saber sobre a urgente necessidade de construir um sistema público de saúde? Ou sobre a necessidade de alocar mais dinheiro para fortalecer esse sistema público. Ou fazer o LAFERGS funcionar. Ou construir uma fábrica de equipamentos e insumos. Ou concursar funcionários e pagar um salário digno. Ou ajudar os municípios a implantar uma rede de atenção básica à saúde, resolutiva, que cubra, no mínimo, 80% da população. Ou ampliar e qualificar os serviços de urgência/emergência e os leitos hospitalares? Ou, ainda, regionalizar a saúde, de verdade, com estruturas que efetivamente funcionem?

A população não precisa subsidiar o governo, com não sei quais propostas. Basta o governo ter vergonha na cara e fazer aquilo que está escrito na Constituição Federal. Basta querer fazer, não viver de costas para a população e de joelhos para os empresários, incentivando-os e subsidiando-os de todas as formas possíveis e imagináveis, que em dois minutos resolvemos essa tão “complexa” situação.

Lucio Barcelos - Médico Sanitarista
Outubro de 2011.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

07 de outubro de 2011 |

Artigo - ZH

Tiro no pé, por Lucio Barcelos*

A versão da Emenda Constitucional nº 29 (EC 29), recém aprovada na Câmara dos Deputados, conseguiu a fantástica proeza de reduzir em R$ 7 bilhões o total de recursos financeiros atualmente empregados na saúde, pelos entes públicos. Se as coisas já eram extremamente difíceis, com os recursos atuais, imagine-se com menos R$ 7 bilhões. Essa redução fica por conta de um artifício, engendrado pelos governadores, que permite que eles excluam, da base de cálculo dos 12% que devem colocar na saúde, os recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb). Portanto, entramos para a votação da tão esperada EC 29 com R$ 71,5 bilhões e saímos com R$ 64,5 bilhões. Dá para acreditar? O que estava em questão, que era a modificação da base de cálculo dos recursos disponibilizados pelo governo federal, não sofreu alteração. A União continua a colocar a variação nominal do PIB e não se falou da proposta anterior, de 2007, o PLS 121/2007, do senador Tião Viana, que propunha 10% das receitas correntes brutas, o que elevaria os recursos para R$ 104 bilhões. Ou seja, mais R$ 32,5 bilhões para a saúde. O Senado pode reverter essa situação? Poder, pode. Só acho bom não levar muita fé, considerando sua composição atual.

A votação da EC 29 com a alteração da forma de cálculo dos recursos disponibilizados pela União, ou seja, os 10% das receitas brutas, resolveria, em tese, aquilo que se acredita ser o principal problema da saúde: mais dinheiro. Insisto, porém, na tese de que de nada adianta mais dinheiro se, concomitantemente, não for feita uma reversão no modelo do sistema em funcionamento. Mais 32,5 bilhões para comprar serviços privados não produzirão mudanças substantivas nos graves problemas de acesso da população ao SUS. Qualquer recurso novo deve, necessariamente, em meu ponto de vista, estar condicionado a uma ampliação e fortalecimento do setor público/estatal. A aprovação da EC 29, nesse sentido, deveria vincular o uso dos novos recursos a esta estratégia. O acesso a saúde não pode continuar subordinado ao poder aquisitivo dos cidadãos.

Por fim, e a título de esclarecimento: o problema da União com a extinção da CPMF, não foi perda de recursos. Os recursos oriundos da CPMF (o percentual que era destinado à saúde) foram compensados pelo aumento das alíquotas do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL). Em 2007, a arrecadação da União com esses impostos correspondia a 1,9% do PIB (R$ 49,5 bilhões) e, hoje, equivale a 2,5% do PIB (R$ 101,3 bilhões). São R$ 51,8 bilhões a mais. Vamos combinar, então, que o problema não é de disponibilidade de recursos da União. O problema é, falando de forma clara, de definição política de prioridades e de respeito com a população pobre deste país.

*MÉDICO SANITARISTA