sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Em regressão!

Excluídos todos os subterfúgios, sofismas e malabarismos verbais, de quem propõe, o que resta do Instituto Municipal da Estratégia da Saúde da Família (IMESF) é uma afronta aos princípios do Sistema Único de Saúde.

Este não é um debate jurídico/legal. É um debate eminentemente político. O que está em discussão são duas concepções de construção de um sistema de saúde. Uma, a que privilegia o IMESF, por mais que tente desviar a atenção e vender ilusões, defende, ao fim e ao cabo, um sistema privado de saúde, com contratos de trabalhadores pela CLT e todas as conseqüências daí derivadas. A outra, que está inscrita na constituição federal, defende um sistema de natureza pública, com funcionários concursados, contratados pelo regime jurídico único, dentro de uma carreira pública. Elas não são complementares. São excludentes. Por óbvio, como a saúde não é prioridade do governo do município (aliás, a bem da verdade, de nenhum governo), os investimentos, quando existem são ridiculamente pequenos, acontecendo o que todos conhecemos: filas intermináveis, acesso quase impossível a uma consulta médica ou exame complementar, internações hospitalares com demora de meses ou, por vezes, anos. O cidadão que vê esse descalabro na saúde, produzido pela irresponsabilidade do governo, quando ouve falar de um Instituto de Saúde da Família, deve achar que finalmente ele terá a assistência que merece. Ledo engano. O que estão tentando lhe vender é uma mistura de má fé com charlatanice da pior qualidade. Ninguém está obrigado a defender um sistema público estatal de saúde. Pode defender o sistema privado. Agora, tem que ter a honestidade de afirmar isso. O que não pode é confundir a população. Afirmar que o Instituto é necessário para garantir a ampliação das Equipes de Saúde da Família é uma fraude. Hoje, existem 101 equipes funcionando no município. A ampliação delas para 202 ou 303, independe da criação do IMESF. O município tem os recursos e a autonomia para concursar o número de equipes que ele entender necessário. Fica aqui o desafio para que o governo demonstre a imprescindibilidade do IMESF para garantir a ampliação e o bom funcionamento da atenção primária à saúde.

Lucio Barcelos – Médico Sanitarista
Dezembro de 2010

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Muito mais do mesmo 2.

Tem coisa de um mês, escrevi um artigo intitulado “Muito mais do Mesmo”, onde procurei justificar meu voto nulo e, ao mesmo tempo, procurei demonstrar que o parlamento brasileiro já tinha esgotado suas funções e que, hoje, não passava da imagem distorcida de algo que muitos anos atrás, teve algum papel relevante na história do país.
Por essa razão, estou verdadeiramente espantado com toda essa gritaria e suposta indignação com o aumento que se auto-concederam os senhores deputados e senadores.

Alguém tinha alguma dúvida a respeito do comportamento dos ilustres parlamentares?
Eu gostaria que alguém me informasse qual a novidade, ou qual a mudança de comportamento que representa mais esse ato obsceno dos parlamentares.

Então, não me venham com essa cara de espanto. De quem não imaginava que os congressistas não seriam capazes disso. Não foi todo mundo avisado? No meio desses 513 deputados e 81 senadores, se existir ao menos um que se mova, autenticamente, por um interesse maior, na defesa das reais necessidades da população, creio que já podemos contar vitória.

É claro que nem todos votaram a favor do aumento. Alguns, de boa fé, e outros, por malandragem, não compareceram ou, então, votaram contra o aumento. Considerando que já sabiam, de antemão, o resultado, esses votos contrários ou as ausências, trazem a marca do oportunismo e pouco valor pode ser dado aos mesmos. Eu não vejo absolutamente nenhuma contradição na atitude dos deputados. Quem reclama, agora, pessoas de classe média esclarecida, que sabem a milhares de anos, que o congresso brasileiro é a farsa grotesca que é, não tem o direito de reclamar de qualquer coisa que os mesmos façam ou deixem de fazer. Deveriam ter pensado antes de depositar seus votos. E deveriam servir de exemplo para uma parcela enorme da população que, por seguir o exemplo da “classe média esclarecida” continua depositando confiança (com grande desconfiança, é verdade), nesse bando de malandros que compõe a chamada classe política brasileira. Que de classe não tem nada.

Então, não me venham com essa cara de espanto e de indignação. Deveriam ter feito como fizemos, os 36 milhões que votamos nulo ou branco, ou que decidimos pela abstenção.

Se fossemos o dobro, provavelmente, hoje as coisas seriam diferentes. Mas não, resolveram eleger os Tiriricas e os Malufs da vida que, nesse momento, e nos próximos quatro anos, vão rolar de rir de nossa cara, por palhaços que somos. Ou são.

Lucio Barcelos - Médico Sanitarista
Vereador suplente pelo PSOL.
Dezembro de 2010.
A mercantilização da vida!

Não são fatos isolados. Muito menos eventuais. A mercantilização das relações sociais é um fenômeno mundial, que afeta a vida de todos os cidadãos, em maior ou menor escala. Entenda-se por mercantilização, o imperativo social de realização do lucro, da competição, e da necessidade irrefreável de consumo. No mundo atual, essas categorias determinam e condicionam os “valores” vigentes na sociedade. Não são os homens que mandam no mercado, é o mercado que manda nos homens. É um mundo onde “tudo pode ser comprado e tudo pode ser vendido”. Bens como saúde, educação, moradia, saneamento, deixam de representar “valores em si”, como direitos de cidadania, e passam a ficar subordinados à realização dos ganhos financeiros dos empreendedores de negócios.

O que presenciamos é uma verdadeira inversão de valores na sociedade. São permanentes e crescentes as manifestações desse fenômeno: o endividamento absurdo das camadas médias e pobres da sociedade, através do crédito consignado e do pagamento a longuíssimo prazo, com juros extorsivos; a oferta de facilidades na compra de planos de seguro saúde, cujo retorno é de qualidade extremamente duvidosa; a corrupção sistêmica, que alcança todas as áreas; a ruptura do tecido social, pela distância obscena entre os milhares de muito ricos e os milhões de muito pobres; a insistência em aprovar e efetivar projetos que possuem um potencial de destruição ampliada da natureza, visando ganhos imediatos, não importando seu custo social.
Na área da saúde, onde atuo, são inúmeros os exemplos dessa subordinação do direito do cidadão ao “direito” do mercado. Começando pela venda de medicamentos e insumos, uma área de alto risco, uma vez que em função da necessidade da realização de seus lucros, as grandes indústrias farmacêuticas fazem pesadas campanhas de marketing, para garantir a venda de seus produtos. O descontrole chegou a tal ponto que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), determinou que, a partir de agora, os antibióticos somente poderão ser vendidos contra a apresentação de receita médica.
Mais um exemplo: a rede privada de saúde – hospitais, para citar o mais comum, possuem uma planilha de custos, onde está descrito o número de dias, o tipo de hotelaria, o tipo de medicamentos e demais procedimentos que podem ser ofertados a um determinado paciente, dentro de uma margem razoável de lucro. Caso o paciente ultrapasse os custos previstos, ele é convidado, por mecanismos os mais variados possíveis, a dar alta daquele hospital e buscar outro serviço. É assim que funciona.

Em um serviço público estatal, a relação que se estabelece entre o usuário e o serviço é de outra natureza. Nesse caso, o que está em primeiro lugar, sempre, é o bem estar do cidadão. Podemos discutir a qualidade do serviço, tendo em vista os baixos investimentos em saúde realizados pelo Estado. O importante, no entanto, é que nessa relação, o “valor” maior é a saúde do cidadão. Já no setor privado os determinantes são outros. Não estou aqui sugerindo que o setor privado não cuide dos pacientes. Mas sim que seus critérios estão “contaminados” pela realização do lucro.
Um terceiro exemplo, ainda: o que dizer, finalmente, da mais recente “pandemia” provocada pelo vírus H1N1? Como explicar que ela tenha surgido em um ano e desaparecido no ano seguinte. Mesmo em países onde a população não foi vacinada? Isso, dando de barato que a vacina ofereceu a proteção necessária aos grupos de risco. É uma situação, no mínimo insólita. A “pandemia” do H1N1 foi mais letal que as tradicionais causas básicas de morte, ou a necessidade de vender medicamentos, vacinas, internar pessoas, mobilizar milhões em recursos, falou mais alto?

Viver numa sociedade dominada pelos ganhos individuais e pelo lucro a qualquer custo, tem um preço extremamente alto, que a população paga e vai continuar pagando, até que se produza uma mudança substancial em suas formas de organização.

Lucio Barcelos - Médico Sanitarista
Dezembro de 2010.


segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Porto Alegre: um SUS injusto e ineficiente.
O município de Porto Alegre conta, hoje, com parcos 21% de cobertura populacional pelas Equipes de Saúde da Família. São 101 Equipes, onde deveriam ser 286 para atingir uma cobertura de 80% da população. Ou seja, são beneficiados pelo programa, apenas 260 mil habitantes, de um total de 01 milhão e 360 mil moradores da capital.

Poderia ser diferente? O município tem recurso para isso? Eu afirmo que sim. E que a expansão do Saúde da Família, só não acontece porque não é prioridade desse governo. Como não era do anterior. Senão vejamos: o orçamento da Secretaria da Saúde de Porto Alegre, conta com R$ 43 milhões de reais para investimento. Sabem quanto desse valor a prefeitura executou? R$ 5 milhões. Portanto, em pleno dezembro, final de exercício, restam R$ 37 milhões para investir. Com esse dinheiro, podem ser construídos e mantidos mais 102 Equipes de Saúde da Família. O município atingiria o percentual de 40% de cobertura populacional. Com mais um esforço de conversão das atuais unidades de atenção básica tradicionais, que poderiam ser “convertidas” em PSF, com a ajuda do Ministério da Saúde, poderíamos alcançar um patamar razoável, para bem perto de uns 60 a 70% de cobertura pela Estratégia Saúde da Família.

Porque estou dizendo isso tudo? Pelo simples fato de que, na condição de cidadão e de vereador suplente em Porto Alegre, quero manifestar minha mais profunda contrariedade com relação ao envio da proposta de criação do “Instituto Privado de Saúde da Família”. pelo governo atual.
Estamos cansados de saber que o problema da saúde de Porto Alegre não é “apenas” a baixa cobertura pelas Equipes de Saúde da Família. Esse é um problema dramático, que empurra a maioria da população para as emergências hospitalares. O problema é que as outras estruturas da Secretaria da Saúde também sofrem de uma enorme insuficiência de pessoal, pelos baixos salários, por baixa adesão aos programas, por áreas físicas deterioradas, pelo uso de equipamentos obsoletos e precários, pela demora no atendimento, pelas filas, que se constituem em uma verdadeira chaga do sistema.

Nessas circunstâncias, qual a solução que o governo apresenta para resolver um problema dessa complexidade. O “Instituto Privado de Saúde da Família”. Que se insere na linha da “modernização” da gestão. Não resolve nenhum dos graves problemas da estrutura da Secretaria e cria outro, ao propor uma saída privada para um problema público. Apenas para reafirmar, essa proposta não conta com o apoio de nenhuma das entidades que atuam na área da saúde (Conselho Municipal de Saúde, sindicato Médico, Sindicato dos Enfermeiros, Associação dos Usuários,etc.)

Lucio Barcelos – Médico Sanitarista – Vereador Suplente pelo PSOL em Porto Alegre
Dezembro de 2010.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Limpeza social e rendimentos na saúde: tudo a ver!

Um dia destes, você vai acordar, levantar, e ler, em letras garrafais, a seguinte manchete estampada nos principais jornais do país: “Polícia invade bairro de classe média alta, em busca de drogas e traficantes” ou essa “Polícia invade mansão em bairro de classe alta e prende um dos maiores controladores da droga no País”.

Ou, ainda: “Governo resolve publicar decreto, federalizando os hospitais falimentares da ULBRA”, ou, essa, “Governo estatiza rede de hospitais filantrópicos que utiliza o dinheiro público para se capitalizar”.
Dificilmente veremos esse dia chegar, uma vez que a força policial/militar do Estado, está voltada para promover a ‘limpeza” dos morros e favelas, onde vive a população pobre e sem acesso a políticas públicas decentes. O problema real, tanto em um caso, o do tráfico de drogas, quanto no outro, o da desassistência à saúde, é que os verdadeiros responsáveis pelo empobrecimento e pela desassistência, não são sequer nomeados nessa infernal batalha do bem contra o mal, onde, invariavelmente, o mal são os pobres, negros e, se necessário, homossexuais. De concreto, fica o aprofundamento do preconceito e do distanciamento existente entre as classes remediadas e a população pobre que, de acordo com o politicamente correto, não vivem mais em favelas, e sim em “comunidades”. Anomalia que se inscreve na mesma política atual, de dar nomes vistosos, para antigas e reconhecidas situações de “apartheid” social.

Na área da saúde, a guerra para destruir os serviços públicos e transformá-los em serviços privados, rentáveis ao capital, beira, atualmente, às raias do absurdo. A tal ponto que hoje, em nosso Estado, restam uma meia dúzia de serviços tipicamente públicos. A mais recente frente de batalha é a proposta de transformação do Programa de Saúde da Família, da SMS de Porto Alegre em uma Fundação Privada. O que significa colocar o motor do sistema público (a atenção primária), a serviço dos rendimentos do setor privado, fechando o ciclo do processo de privatização desse setor.

Tem gente que considera isso positivo. Da mesma forma que existem aqueles que aplaudem a invasão das favelas do Rio de Janeiro. Limpeza social e rendimentos na saúde. Nesse ritmo, em pouco tempo, seremos todos usuários de planos de saúde e consumidores de drogas, provenientes de centros de abastecimento da classe média alta. Os demais estarão dizimados. Outra alternativa, mais saudável, seria começar a debater, seriamente, a legalização das drogas e a estatização da saúde.

Lucio Barcelos – Médico Sanitarista

Dezembro de 2010.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

CONTORNANDO VAZIOS, é preciso muito pensar.

Para Marco Aurélio Padilha e
Tania Galli Fonseca, preciosas vidas.


Eram seis horas da manhã de 23 de novembro. Desci dois lances de escada para recolher o jornal. Naquele dia, cobrindo o periódico, uma folha preta, na qual, em letras vermelhas, estava escrito CRACK, e, em letras brancas, duas assertivas: NEM PENSAR e A LUTA AINDA NÃO TERMINOU. A sobrecapa fora meticulosamente projetada para chamar atenção acerca de um problema que, desta vez, se traveste numa droga chamada crack. Naquele momento, eu ainda não sabia, que meu companheiro de vinte e oito anos de convivência, acabara de falecer, internado que estava, num centro de terapia intensiva.
Mas, por que me tomo de coragem e comento meus hábitos matinais e escrevo sobre algo tão particular, como o triste instante, a derradeira partida daquele com quem convivi boa parte da minha vida?
Meu marido era alcoolista. Ou seja, não podia consumir álcool, assim como um diabético não pode consumir açúcar. O tratamento com o Dr. Ernani Luz (já falecido) nos ajudou, a ele e a mim, a lidarmos com as enormes dificuldades que esta doença apresenta, tanto para o dependente, quanto para aqueles que o cercam. Assim que, nos últimos vinte e sete anos, ele conseguiu dizer: NÃO AO ÁLCOOL.
Mas, ele também foi dependente do tabaco, que, por ser uma droga com menos interferências sociais, é, ainda, abertamente tolerada. Contudo, incipientes dificuldades respiratórias e, a posterior, constatação de que estava com enfisema pulmonar o levaram a parar de fumar. Faziam mais de quinze anos, que, abaixo de muito sofrimento, tanto dele, como nosso, os que estávamos por perto das suas crises de intensa ansiedade, largou o cigarro. Era um dia 01 de abril e, daquela vez, seria de forma definitiva. Na ocasião comentou, com seu jeito irônico: se eu voltar a fumar, serei o maior de todos os bobos.
Sem as bengalas, que tais drogas representam, tratou de aprender novos modos de ser, estar e lidar com a vida e suas dificuldades. Às vezes, trocando de amigos; em outras, mudando os hábitos alimentares ou fazendo exercícios físicos; e, até, correndo atrás do sonho de se fazer um melhor escritor. Para isto, as sessões de terapia, na discussão dos porquês das suas mazelas e na busca por possibilidades outras de se responsabilizar por um jeito próprio de fazer escolhas criativas, foram fundamentais. De tal modo, que as enormes dificuldades iniciais com a abstinência - do álcool e do tabaco – foram contornadas, e, a vida, com seus altos e baixos, passava a valer a pena de ser vivida. De cara limpa, na conscientização, que passou por conversas amorosas e/ou enraivecidas, com a família e com amigos, no auxílio de psiquiatras e psicólogos, tornou-se um especialista no amplo assunto das patologias contemporâneas e suas drogas. Interessava-se em levantar questões sobre causas e efeitos, sobre as repercussões no uso das substâncias psicoativas, entre os pobres e os ricos. Numa busca, até mesmo filosófica, sobre quem carregaria a culpa, quem seria o comedor de pecados? Em conversas sobre o cotidiano, por exemplo, observava problemas de relacionamento que podem nascer de brigas fúteis; ou insatisfações, daqueles que se dizem estar acima do peso, que a moda preconiza; ou dos que se deprimem se não circularem com o carro do ano; ou daquele que gasta, o que não têm, para satisfazer o filho que quer viajar a Bariloche. Estes, e tantos outros pontos, sua mente investigativa queria entender. Por trás destas pesquisas, costumava explicar, estava o jornalista curioso pelos fatos e suas versões.
Sem, neste momento, aprofundar as diferenças que marcam o cotidiano das classes populares, ouso dizer que entre os mais abonados o não-ter é, freqüentemente, sentido como fracasso. Nestas ocasiões, tentando preencher a falta de sentido da vida, considerada, por muitos, insuportável, buscam tamponar o vazio - real ou imaginário - através de saídas feitas por atalhos ilusórios. É quando um alívio, aparente, começa na efêmera tragada de um cigarro ou na alegria inebriante de bebidas translúcidas; ou, parece estar, nas promessas de férias em ilhas paradisíacas ou, talvez, na condução de carros velozes.

Em nossa sociedade, para sujeitos em crise, há, de outro lado, fornecedores, produtores (que até se queixam dos altos impostos pagos), traficantes, consumidores recreativos, a cegueira de determinados legisladores, enfim, aqueles que, em alguma medida, são responsáveis pela imensa panacéia de drogas disponíveis e que formam uma rede, de muitos pontos, sempre estendida para capturar sua presa. Na adolescência, segundo Maria Rita Kehl, o abuso do álcool e de outras drogas, em sociedades laicas, em que faltam ritos de passagem para sinalizar o ingresso na vida adulta, é comum, e funciona como desafio para decidir a entrada em certos grupos. São grupos em que a proteção oferecida pode estar relacionada com atos de delinqüência, evidentes em todas as classes sociais. Contudo, a autora observa, a delinqüência pode ser tanto patologia de um ou outro sujeito, em particular, quanto da sociedade em seu conjunto.
Por trás desta engrenagem, como seu pano de fundo, está aquilo que a proximidade nem sempre nos permite ver: nossa sociedade capitalista precisa se manter funcionante e, para isto, são necessários, cada vez mais, produtores e consumidores.

O uso das drogas é uma escolha pessoal, mas, o incentivo ao seu consumo é socialmente determinado. Assim, à tal máquina, não lhe importa quantos se matam ou morrem, importa é VENDER FELICIDADE, por custos e preços variados.

Ao expor nossa história, interrompida pela sua morte prematura, aos cinqüenta e cinco anos, de falência múltipla de órgãos, outrora atingidos pelo uso de álcool e outras drogas, cumpro, de certa forma, seu desejo em doar o corpo à ciência. E, como hoje eu preciso de alguém que me escute, contornando vazios, busquei coragem dando voz as suas e, também, as minhas enormes inquietações. Quem sabe assim estas nossas pequenas cumplicidades possam reverberar em outros corpos, ao se descobrirem, como nós nos descobrimos, sujeitos de preciosas vidas?
Afinal, para nós, este quarto de século longe do álcool e do tabaco, ainda foi um tempo possível, para plantar uma árvore, escrever um livro e ter uma filha. Contudo, sua antecipada partida lhe tirou a alegria da colheita, que promete ser generosa.

Porto Alegre, primavera de 2010.

Barbara E. Neubarth,
Psicóloga, doutora em Educação (UFRGS)