sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Em regressão!

Excluídos todos os subterfúgios, sofismas e malabarismos verbais, de quem propõe, o que resta do Instituto Municipal da Estratégia da Saúde da Família (IMESF) é uma afronta aos princípios do Sistema Único de Saúde.

Este não é um debate jurídico/legal. É um debate eminentemente político. O que está em discussão são duas concepções de construção de um sistema de saúde. Uma, a que privilegia o IMESF, por mais que tente desviar a atenção e vender ilusões, defende, ao fim e ao cabo, um sistema privado de saúde, com contratos de trabalhadores pela CLT e todas as conseqüências daí derivadas. A outra, que está inscrita na constituição federal, defende um sistema de natureza pública, com funcionários concursados, contratados pelo regime jurídico único, dentro de uma carreira pública. Elas não são complementares. São excludentes. Por óbvio, como a saúde não é prioridade do governo do município (aliás, a bem da verdade, de nenhum governo), os investimentos, quando existem são ridiculamente pequenos, acontecendo o que todos conhecemos: filas intermináveis, acesso quase impossível a uma consulta médica ou exame complementar, internações hospitalares com demora de meses ou, por vezes, anos. O cidadão que vê esse descalabro na saúde, produzido pela irresponsabilidade do governo, quando ouve falar de um Instituto de Saúde da Família, deve achar que finalmente ele terá a assistência que merece. Ledo engano. O que estão tentando lhe vender é uma mistura de má fé com charlatanice da pior qualidade. Ninguém está obrigado a defender um sistema público estatal de saúde. Pode defender o sistema privado. Agora, tem que ter a honestidade de afirmar isso. O que não pode é confundir a população. Afirmar que o Instituto é necessário para garantir a ampliação das Equipes de Saúde da Família é uma fraude. Hoje, existem 101 equipes funcionando no município. A ampliação delas para 202 ou 303, independe da criação do IMESF. O município tem os recursos e a autonomia para concursar o número de equipes que ele entender necessário. Fica aqui o desafio para que o governo demonstre a imprescindibilidade do IMESF para garantir a ampliação e o bom funcionamento da atenção primária à saúde.

Lucio Barcelos – Médico Sanitarista
Dezembro de 2010

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Muito mais do mesmo 2.

Tem coisa de um mês, escrevi um artigo intitulado “Muito mais do Mesmo”, onde procurei justificar meu voto nulo e, ao mesmo tempo, procurei demonstrar que o parlamento brasileiro já tinha esgotado suas funções e que, hoje, não passava da imagem distorcida de algo que muitos anos atrás, teve algum papel relevante na história do país.
Por essa razão, estou verdadeiramente espantado com toda essa gritaria e suposta indignação com o aumento que se auto-concederam os senhores deputados e senadores.

Alguém tinha alguma dúvida a respeito do comportamento dos ilustres parlamentares?
Eu gostaria que alguém me informasse qual a novidade, ou qual a mudança de comportamento que representa mais esse ato obsceno dos parlamentares.

Então, não me venham com essa cara de espanto. De quem não imaginava que os congressistas não seriam capazes disso. Não foi todo mundo avisado? No meio desses 513 deputados e 81 senadores, se existir ao menos um que se mova, autenticamente, por um interesse maior, na defesa das reais necessidades da população, creio que já podemos contar vitória.

É claro que nem todos votaram a favor do aumento. Alguns, de boa fé, e outros, por malandragem, não compareceram ou, então, votaram contra o aumento. Considerando que já sabiam, de antemão, o resultado, esses votos contrários ou as ausências, trazem a marca do oportunismo e pouco valor pode ser dado aos mesmos. Eu não vejo absolutamente nenhuma contradição na atitude dos deputados. Quem reclama, agora, pessoas de classe média esclarecida, que sabem a milhares de anos, que o congresso brasileiro é a farsa grotesca que é, não tem o direito de reclamar de qualquer coisa que os mesmos façam ou deixem de fazer. Deveriam ter pensado antes de depositar seus votos. E deveriam servir de exemplo para uma parcela enorme da população que, por seguir o exemplo da “classe média esclarecida” continua depositando confiança (com grande desconfiança, é verdade), nesse bando de malandros que compõe a chamada classe política brasileira. Que de classe não tem nada.

Então, não me venham com essa cara de espanto e de indignação. Deveriam ter feito como fizemos, os 36 milhões que votamos nulo ou branco, ou que decidimos pela abstenção.

Se fossemos o dobro, provavelmente, hoje as coisas seriam diferentes. Mas não, resolveram eleger os Tiriricas e os Malufs da vida que, nesse momento, e nos próximos quatro anos, vão rolar de rir de nossa cara, por palhaços que somos. Ou são.

Lucio Barcelos - Médico Sanitarista
Vereador suplente pelo PSOL.
Dezembro de 2010.
A mercantilização da vida!

Não são fatos isolados. Muito menos eventuais. A mercantilização das relações sociais é um fenômeno mundial, que afeta a vida de todos os cidadãos, em maior ou menor escala. Entenda-se por mercantilização, o imperativo social de realização do lucro, da competição, e da necessidade irrefreável de consumo. No mundo atual, essas categorias determinam e condicionam os “valores” vigentes na sociedade. Não são os homens que mandam no mercado, é o mercado que manda nos homens. É um mundo onde “tudo pode ser comprado e tudo pode ser vendido”. Bens como saúde, educação, moradia, saneamento, deixam de representar “valores em si”, como direitos de cidadania, e passam a ficar subordinados à realização dos ganhos financeiros dos empreendedores de negócios.

O que presenciamos é uma verdadeira inversão de valores na sociedade. São permanentes e crescentes as manifestações desse fenômeno: o endividamento absurdo das camadas médias e pobres da sociedade, através do crédito consignado e do pagamento a longuíssimo prazo, com juros extorsivos; a oferta de facilidades na compra de planos de seguro saúde, cujo retorno é de qualidade extremamente duvidosa; a corrupção sistêmica, que alcança todas as áreas; a ruptura do tecido social, pela distância obscena entre os milhares de muito ricos e os milhões de muito pobres; a insistência em aprovar e efetivar projetos que possuem um potencial de destruição ampliada da natureza, visando ganhos imediatos, não importando seu custo social.
Na área da saúde, onde atuo, são inúmeros os exemplos dessa subordinação do direito do cidadão ao “direito” do mercado. Começando pela venda de medicamentos e insumos, uma área de alto risco, uma vez que em função da necessidade da realização de seus lucros, as grandes indústrias farmacêuticas fazem pesadas campanhas de marketing, para garantir a venda de seus produtos. O descontrole chegou a tal ponto que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), determinou que, a partir de agora, os antibióticos somente poderão ser vendidos contra a apresentação de receita médica.
Mais um exemplo: a rede privada de saúde – hospitais, para citar o mais comum, possuem uma planilha de custos, onde está descrito o número de dias, o tipo de hotelaria, o tipo de medicamentos e demais procedimentos que podem ser ofertados a um determinado paciente, dentro de uma margem razoável de lucro. Caso o paciente ultrapasse os custos previstos, ele é convidado, por mecanismos os mais variados possíveis, a dar alta daquele hospital e buscar outro serviço. É assim que funciona.

Em um serviço público estatal, a relação que se estabelece entre o usuário e o serviço é de outra natureza. Nesse caso, o que está em primeiro lugar, sempre, é o bem estar do cidadão. Podemos discutir a qualidade do serviço, tendo em vista os baixos investimentos em saúde realizados pelo Estado. O importante, no entanto, é que nessa relação, o “valor” maior é a saúde do cidadão. Já no setor privado os determinantes são outros. Não estou aqui sugerindo que o setor privado não cuide dos pacientes. Mas sim que seus critérios estão “contaminados” pela realização do lucro.
Um terceiro exemplo, ainda: o que dizer, finalmente, da mais recente “pandemia” provocada pelo vírus H1N1? Como explicar que ela tenha surgido em um ano e desaparecido no ano seguinte. Mesmo em países onde a população não foi vacinada? Isso, dando de barato que a vacina ofereceu a proteção necessária aos grupos de risco. É uma situação, no mínimo insólita. A “pandemia” do H1N1 foi mais letal que as tradicionais causas básicas de morte, ou a necessidade de vender medicamentos, vacinas, internar pessoas, mobilizar milhões em recursos, falou mais alto?

Viver numa sociedade dominada pelos ganhos individuais e pelo lucro a qualquer custo, tem um preço extremamente alto, que a população paga e vai continuar pagando, até que se produza uma mudança substancial em suas formas de organização.

Lucio Barcelos - Médico Sanitarista
Dezembro de 2010.


segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Porto Alegre: um SUS injusto e ineficiente.
O município de Porto Alegre conta, hoje, com parcos 21% de cobertura populacional pelas Equipes de Saúde da Família. São 101 Equipes, onde deveriam ser 286 para atingir uma cobertura de 80% da população. Ou seja, são beneficiados pelo programa, apenas 260 mil habitantes, de um total de 01 milhão e 360 mil moradores da capital.

Poderia ser diferente? O município tem recurso para isso? Eu afirmo que sim. E que a expansão do Saúde da Família, só não acontece porque não é prioridade desse governo. Como não era do anterior. Senão vejamos: o orçamento da Secretaria da Saúde de Porto Alegre, conta com R$ 43 milhões de reais para investimento. Sabem quanto desse valor a prefeitura executou? R$ 5 milhões. Portanto, em pleno dezembro, final de exercício, restam R$ 37 milhões para investir. Com esse dinheiro, podem ser construídos e mantidos mais 102 Equipes de Saúde da Família. O município atingiria o percentual de 40% de cobertura populacional. Com mais um esforço de conversão das atuais unidades de atenção básica tradicionais, que poderiam ser “convertidas” em PSF, com a ajuda do Ministério da Saúde, poderíamos alcançar um patamar razoável, para bem perto de uns 60 a 70% de cobertura pela Estratégia Saúde da Família.

Porque estou dizendo isso tudo? Pelo simples fato de que, na condição de cidadão e de vereador suplente em Porto Alegre, quero manifestar minha mais profunda contrariedade com relação ao envio da proposta de criação do “Instituto Privado de Saúde da Família”. pelo governo atual.
Estamos cansados de saber que o problema da saúde de Porto Alegre não é “apenas” a baixa cobertura pelas Equipes de Saúde da Família. Esse é um problema dramático, que empurra a maioria da população para as emergências hospitalares. O problema é que as outras estruturas da Secretaria da Saúde também sofrem de uma enorme insuficiência de pessoal, pelos baixos salários, por baixa adesão aos programas, por áreas físicas deterioradas, pelo uso de equipamentos obsoletos e precários, pela demora no atendimento, pelas filas, que se constituem em uma verdadeira chaga do sistema.

Nessas circunstâncias, qual a solução que o governo apresenta para resolver um problema dessa complexidade. O “Instituto Privado de Saúde da Família”. Que se insere na linha da “modernização” da gestão. Não resolve nenhum dos graves problemas da estrutura da Secretaria e cria outro, ao propor uma saída privada para um problema público. Apenas para reafirmar, essa proposta não conta com o apoio de nenhuma das entidades que atuam na área da saúde (Conselho Municipal de Saúde, sindicato Médico, Sindicato dos Enfermeiros, Associação dos Usuários,etc.)

Lucio Barcelos – Médico Sanitarista – Vereador Suplente pelo PSOL em Porto Alegre
Dezembro de 2010.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Limpeza social e rendimentos na saúde: tudo a ver!

Um dia destes, você vai acordar, levantar, e ler, em letras garrafais, a seguinte manchete estampada nos principais jornais do país: “Polícia invade bairro de classe média alta, em busca de drogas e traficantes” ou essa “Polícia invade mansão em bairro de classe alta e prende um dos maiores controladores da droga no País”.

Ou, ainda: “Governo resolve publicar decreto, federalizando os hospitais falimentares da ULBRA”, ou, essa, “Governo estatiza rede de hospitais filantrópicos que utiliza o dinheiro público para se capitalizar”.
Dificilmente veremos esse dia chegar, uma vez que a força policial/militar do Estado, está voltada para promover a ‘limpeza” dos morros e favelas, onde vive a população pobre e sem acesso a políticas públicas decentes. O problema real, tanto em um caso, o do tráfico de drogas, quanto no outro, o da desassistência à saúde, é que os verdadeiros responsáveis pelo empobrecimento e pela desassistência, não são sequer nomeados nessa infernal batalha do bem contra o mal, onde, invariavelmente, o mal são os pobres, negros e, se necessário, homossexuais. De concreto, fica o aprofundamento do preconceito e do distanciamento existente entre as classes remediadas e a população pobre que, de acordo com o politicamente correto, não vivem mais em favelas, e sim em “comunidades”. Anomalia que se inscreve na mesma política atual, de dar nomes vistosos, para antigas e reconhecidas situações de “apartheid” social.

Na área da saúde, a guerra para destruir os serviços públicos e transformá-los em serviços privados, rentáveis ao capital, beira, atualmente, às raias do absurdo. A tal ponto que hoje, em nosso Estado, restam uma meia dúzia de serviços tipicamente públicos. A mais recente frente de batalha é a proposta de transformação do Programa de Saúde da Família, da SMS de Porto Alegre em uma Fundação Privada. O que significa colocar o motor do sistema público (a atenção primária), a serviço dos rendimentos do setor privado, fechando o ciclo do processo de privatização desse setor.

Tem gente que considera isso positivo. Da mesma forma que existem aqueles que aplaudem a invasão das favelas do Rio de Janeiro. Limpeza social e rendimentos na saúde. Nesse ritmo, em pouco tempo, seremos todos usuários de planos de saúde e consumidores de drogas, provenientes de centros de abastecimento da classe média alta. Os demais estarão dizimados. Outra alternativa, mais saudável, seria começar a debater, seriamente, a legalização das drogas e a estatização da saúde.

Lucio Barcelos – Médico Sanitarista

Dezembro de 2010.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

CONTORNANDO VAZIOS, é preciso muito pensar.

Para Marco Aurélio Padilha e
Tania Galli Fonseca, preciosas vidas.


Eram seis horas da manhã de 23 de novembro. Desci dois lances de escada para recolher o jornal. Naquele dia, cobrindo o periódico, uma folha preta, na qual, em letras vermelhas, estava escrito CRACK, e, em letras brancas, duas assertivas: NEM PENSAR e A LUTA AINDA NÃO TERMINOU. A sobrecapa fora meticulosamente projetada para chamar atenção acerca de um problema que, desta vez, se traveste numa droga chamada crack. Naquele momento, eu ainda não sabia, que meu companheiro de vinte e oito anos de convivência, acabara de falecer, internado que estava, num centro de terapia intensiva.
Mas, por que me tomo de coragem e comento meus hábitos matinais e escrevo sobre algo tão particular, como o triste instante, a derradeira partida daquele com quem convivi boa parte da minha vida?
Meu marido era alcoolista. Ou seja, não podia consumir álcool, assim como um diabético não pode consumir açúcar. O tratamento com o Dr. Ernani Luz (já falecido) nos ajudou, a ele e a mim, a lidarmos com as enormes dificuldades que esta doença apresenta, tanto para o dependente, quanto para aqueles que o cercam. Assim que, nos últimos vinte e sete anos, ele conseguiu dizer: NÃO AO ÁLCOOL.
Mas, ele também foi dependente do tabaco, que, por ser uma droga com menos interferências sociais, é, ainda, abertamente tolerada. Contudo, incipientes dificuldades respiratórias e, a posterior, constatação de que estava com enfisema pulmonar o levaram a parar de fumar. Faziam mais de quinze anos, que, abaixo de muito sofrimento, tanto dele, como nosso, os que estávamos por perto das suas crises de intensa ansiedade, largou o cigarro. Era um dia 01 de abril e, daquela vez, seria de forma definitiva. Na ocasião comentou, com seu jeito irônico: se eu voltar a fumar, serei o maior de todos os bobos.
Sem as bengalas, que tais drogas representam, tratou de aprender novos modos de ser, estar e lidar com a vida e suas dificuldades. Às vezes, trocando de amigos; em outras, mudando os hábitos alimentares ou fazendo exercícios físicos; e, até, correndo atrás do sonho de se fazer um melhor escritor. Para isto, as sessões de terapia, na discussão dos porquês das suas mazelas e na busca por possibilidades outras de se responsabilizar por um jeito próprio de fazer escolhas criativas, foram fundamentais. De tal modo, que as enormes dificuldades iniciais com a abstinência - do álcool e do tabaco – foram contornadas, e, a vida, com seus altos e baixos, passava a valer a pena de ser vivida. De cara limpa, na conscientização, que passou por conversas amorosas e/ou enraivecidas, com a família e com amigos, no auxílio de psiquiatras e psicólogos, tornou-se um especialista no amplo assunto das patologias contemporâneas e suas drogas. Interessava-se em levantar questões sobre causas e efeitos, sobre as repercussões no uso das substâncias psicoativas, entre os pobres e os ricos. Numa busca, até mesmo filosófica, sobre quem carregaria a culpa, quem seria o comedor de pecados? Em conversas sobre o cotidiano, por exemplo, observava problemas de relacionamento que podem nascer de brigas fúteis; ou insatisfações, daqueles que se dizem estar acima do peso, que a moda preconiza; ou dos que se deprimem se não circularem com o carro do ano; ou daquele que gasta, o que não têm, para satisfazer o filho que quer viajar a Bariloche. Estes, e tantos outros pontos, sua mente investigativa queria entender. Por trás destas pesquisas, costumava explicar, estava o jornalista curioso pelos fatos e suas versões.
Sem, neste momento, aprofundar as diferenças que marcam o cotidiano das classes populares, ouso dizer que entre os mais abonados o não-ter é, freqüentemente, sentido como fracasso. Nestas ocasiões, tentando preencher a falta de sentido da vida, considerada, por muitos, insuportável, buscam tamponar o vazio - real ou imaginário - através de saídas feitas por atalhos ilusórios. É quando um alívio, aparente, começa na efêmera tragada de um cigarro ou na alegria inebriante de bebidas translúcidas; ou, parece estar, nas promessas de férias em ilhas paradisíacas ou, talvez, na condução de carros velozes.

Em nossa sociedade, para sujeitos em crise, há, de outro lado, fornecedores, produtores (que até se queixam dos altos impostos pagos), traficantes, consumidores recreativos, a cegueira de determinados legisladores, enfim, aqueles que, em alguma medida, são responsáveis pela imensa panacéia de drogas disponíveis e que formam uma rede, de muitos pontos, sempre estendida para capturar sua presa. Na adolescência, segundo Maria Rita Kehl, o abuso do álcool e de outras drogas, em sociedades laicas, em que faltam ritos de passagem para sinalizar o ingresso na vida adulta, é comum, e funciona como desafio para decidir a entrada em certos grupos. São grupos em que a proteção oferecida pode estar relacionada com atos de delinqüência, evidentes em todas as classes sociais. Contudo, a autora observa, a delinqüência pode ser tanto patologia de um ou outro sujeito, em particular, quanto da sociedade em seu conjunto.
Por trás desta engrenagem, como seu pano de fundo, está aquilo que a proximidade nem sempre nos permite ver: nossa sociedade capitalista precisa se manter funcionante e, para isto, são necessários, cada vez mais, produtores e consumidores.

O uso das drogas é uma escolha pessoal, mas, o incentivo ao seu consumo é socialmente determinado. Assim, à tal máquina, não lhe importa quantos se matam ou morrem, importa é VENDER FELICIDADE, por custos e preços variados.

Ao expor nossa história, interrompida pela sua morte prematura, aos cinqüenta e cinco anos, de falência múltipla de órgãos, outrora atingidos pelo uso de álcool e outras drogas, cumpro, de certa forma, seu desejo em doar o corpo à ciência. E, como hoje eu preciso de alguém que me escute, contornando vazios, busquei coragem dando voz as suas e, também, as minhas enormes inquietações. Quem sabe assim estas nossas pequenas cumplicidades possam reverberar em outros corpos, ao se descobrirem, como nós nos descobrimos, sujeitos de preciosas vidas?
Afinal, para nós, este quarto de século longe do álcool e do tabaco, ainda foi um tempo possível, para plantar uma árvore, escrever um livro e ter uma filha. Contudo, sua antecipada partida lhe tirou a alegria da colheita, que promete ser generosa.

Porto Alegre, primavera de 2010.

Barbara E. Neubarth,
Psicóloga, doutora em Educação (UFRGS)







segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Guerra no Rio: substituição de modelo.

Passada a semana da “guerra” contra o tráfico, em algumas favelas do Rio, com direito a lances cinematográficos e transmissões televisivas 24 horas por dia, impõe que se faça alguns comentários, relativizando a onda ufanista e triunfalista de Brasil Grande, instalada pelos órgão oficiais e propagandeada através da grande imprensa.

Primeiro: existe, entre aqueles que estudam as questões relacionadas com o tráfico de drogas, uma visão dominante, de que se encontra em franca decadência o modelo atual, utilizado pelos traficantes, de domínio de territórios pelo uso da força. Sua substituição por outro modelo mais sofisticado, que atenda às necessidades do “mercado”, já estava em gestação, através das milícias (organizações constituídas pela banda podre da polícia – e põe podre nisso), há algum tempo. Então não se trata da eliminação do tráfico de drogas. Trata-se da substituição de um modelo de tráfico ultrapassado, por outro, mais “clean” e adequado aos novos tempos do capitalismo financeirizado.

Segundo: o Estado Brasileiro, no caso específico o governo do Rio de Janeiro, em nenhum momento promoveu qualquer mudança substantiva nas relações sociais existentes nas favelas do Rio. A grande massa de moradores continua pobre e desassistida em termos de saúde, educação, saneamento enfim, as condições básicas de sobrevivência digna de uma população.
Terceiro: em nenhum momento, salvo a “mansão” meia boca, que qualquer cidadão de classe média alta possui (com uma piscininha que deixaria qualquer grande traficante envergonhado), foi colocada em pauta a existência dos verdadeiros “barões” da droga. Os grandes traficantes. Que certamente alimentam o varejo do tráfico, mas que, obviamente, não devem conhecer as favelas do Rio, a não ser através de filmes tipo Tropa de Elite 1 e 2. Ninguém, de sã consciência, acredita que os verdadeiros donos do dinheiro que alimenta o tráfico de drogas no Rio, no Brasil e no mundo, pudessem estar escondidos em alguma viela imunda da favela do Alemão, da Rocinha, ou de qualquer outra.

Acho que o buraco é mais em cima. Quem vai sair esfolado dessa refrega, mais uma vez, vai ser a população pobre das favelas. Vai se ver livre dos traficantes do varejo, mas vai continuar suportando a miséria nossa de cada dia, e as novas milícias que, além de vender drogas, vai tentar vender segurança e outros produtos de ocasião, como os já famosos “gatos” de acesso à internet e à TV a cabo. Não é uma droga?

Lucio Barcelos - Médico Sanitarista
Novembro de 2010

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Em homenagem ao nosso grande amigo
Sérgio Tadeu Vargas Côrtes

Assessor jurídico do Hospital Psiquiátrico São Pedro, Sérgio Tadeu Vargas Côrtes morreu na terça-feira, aos 55 anos, de falência múltipla dos órgãos, no Hospital Moinhos de Vento, na Capital. Apesar de ter parado de fumar há 15 anos, foi vítima de complicações causadas pelo cigarro.

Porto-alegrense, nascido em 17 de dezembro de 1954, Côrtes concluiu os estudos básicos no Colégio Rosário. Depois de ingressar no curso de Jornalismo da Faculdade de Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), embarcou para a Europa, onde permaneceu três anos trabalhando e estudando diferentes culturas. Quando voltou ao Brasil, retomou a faculdade e estagiou com José Antônio Daudt. Jornalista graduado, trabalhou nas rádios Gaúcha, Farroupilha e Pampa e na TVE.

Já formado em Direito, também pela PUCRS, iniciou suas atividades como assessor jurídico. Era apaixonado pela palavra e se dedicou a ministrar oficinas de criação literária, a editar livros e a escrever contos e novelas. O assessor jurídico adorava ler e assistir a filmes, atividades que intensificou após ter complicações de saúde. De acordo com Barbara Neubarth, com quem ele era casado desde 1984, Côrtes era um sonhador, muito brincalhão e lutava por um mundo mais justo.

Além da mulher, ele deixa a filha Gabriela, pais, irmã, sobrinhos, cunhados e amigos. Em 5 de dezembro, às 10h, haverá um culto em sua homenagem na Igreja da Reconciliação, em Porto Alegre.

Pontal do Estaleiro: projeto veda o uso residencial da área

Está em segunda sessão de discussão preliminar de pauta, na sessão ordinária desta segunda-feira (22/11), projeto do vereador Lúcio Barcelos (PSOL) que institui como Área de Proteção do Ambiental Natural e de Interesse Cultural a Unidade de Estruturação Urbana (UEU) 36 da Macrozona (MZ) 04, mais conhecida como Pontal do Estaleiro. Se aprovada a proposta, ficam vedados o uso residencial e a atividade de habitação na área, sendo permitidas as atividades de comércio varejista e de pequeno porte, serviços e atividades especiais.

De acordo com o projeto, toda e qualquer atividade ou construção a ser realizada no local deverá ser objeto de licenciamento ambiental, considerando o Guaíba como um curso d’água. A área poderá receber atividades destinadas à educação ambiental, ao lazer, à recreação e à cultura, desde que não impliquem comprometimento dos elementos naturais e culturais, bem como da paisagem, favorecendo sua recuperação. "Ficam garantidos ao público o acesso à faixa de orla pertencente à área e a integração com o Guaíba.", diz o texto.
A proposta também define o regime urbanístico para a área, estabelecendo que a densidade bruta ser determinada por projeto específico, respeitados os limites previstos, no Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental de Porto Alegre (PDDUA), para Áreas Especiais de Proteção ao Ambiente Natural. ficando estabelecido o Índice de Aproveitamento 0,1 e o Regime Volumétrico de 9 metros de altura máxima e divisa, com taxa de ocupação de 20%, não calculável sobre área de preservação permanente.

"Desde 1996, o Município está em mora com o meio ambiente da Cidade, não tendo providenciado o seu necessário e devido zoneamento ambiental, coisa que deveria ter sido remetida à Câmara Municipal já na proposta de reforma do Plano Diretor. A UEU 4036 é um exemplo dessa dívida do Poder Público Municipal com os bens ambientais e culturais de nossa Cidade, que devem ficar a salvo das modas desenvolvimentistas que vem e vão, como chuvas de gafanhotos.", afirma Lúcio Barcelos.

De acordo com o autor da proposta, a localidade em questão abrange uma área que, a par de ter sido demarcada como Área de Interesse Cultural, é caracterizada como faixa de orla e área de preservação permanente. "Deve ser constituída, de forma expressa, em área de interesse cultural e em área de proteção ao ambiente natural, recebendo um regime urbanístico compatível com os bens ambientais e culturais que dali vertem. Assim, o Legislativo de Porto Alegre responderá aos anseios de nossos cidadãos, que se manifestaram de forma inequívoca contra a transformação da localidade em área de ocupação intensiva e contra o uso residencial", conclui o vereador, se referindo ao recente plebiscito sobre o uso da área do Pontal do Estaleiro (Pontal do Melo).
Carlos Scomazzon (reg. prof. 7400)

Movimento em Defesa da Orla do Rio Guaíba
Porto Alegre RS
Ainda não temos página na internet. Por enquanto acesse os blogs: Porto Alegre RESISTE!, Amigos da Rua Gonçalo de Carvalho e AGAPAN para maiores informações sobre a defesa da Orla do Rio Guaíba.

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domingo, 21 de novembro de 2010

Saúde: privatização em marcha!

Nesta semana, acontece na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, um Seminário intitulado “20 anos de SUS: lutas sociais contra a privatização e em defesa da saúde pública estatal”.

Para a sobrevivência do SUS, com o caráter e a natureza previstos na Constituição Federal, é uma notícia de elevada importância. Contribuirá, certamente, para a retomada da ofensiva da luta por uma saúde pública estatal. É um objetivo nobre e urgentíssimo.

Os dados levantados pela pesquisa realizada pelo IBGE, em parceria com o Ministério da Saúde, sobre a disponibilidade de leitos hospitalares no país, demonstram isso, de forma cabal.
Primeiro porque, como já tínhamos antecipado, está em curso um processo de redução de leitos públicos e de aumento de leitos privados. No Rio Grande do Sul, de acordo com o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), 84% dos leitos hospitalares são privados. É importante que se esclareça que esse movimento não está restrito aos leitos hospitalares. Todas as atividades relevantes do sistema – meios diagnósticos e terapêuticos, pesquisa, produção de medicamentos equipamentos – estão, em sua imensa maioria, nas mãos do setor privado. A mesma pesquisa demonstra esse fato. O número de tomógrafos e de ressonâncias magnéticas é, respectivamente, 07 e 10 vezes maior no setor privado, comparado com a oferta aos pacientes do SUS. Para um sistema que se pretendia que fosse público estatal e “complementado” pelo setor privado, o que se vê é uma marcha acelerada para a privatização.

De um ponto de vista geral, a redução de leitos hospitalares, em um determinado território, não significa, necessariamente, uma piora do sistema de atenção à saúde. Pode, ao contrário, ser a expressão de uma melhora na qualidade e na cobertura da rede de atenção primária (no caso do Brasil, o modelo utilizado é a Estratégia Saúde da Família). Diferentes estudos mostram que a expansão da cobertura na rede primária, determina uma redução da necessidade de leitos hospitalares.

Infelizmente, a situação descrita pela pesquisa do IBGE, e destacada pela imprensa, indica uma situação inversa. Isto é, ocorreu uma redução de leitos no período 2005/2009, sem que houvesse uma ampliação da rede básica de atenção à saúde. No RS, a cobertura da atenção primária (modelo PSF) não ultrapassa os sofríveis 39% da população. Em Porto Alegre, a situação é mais crítica ainda. São apenas 21% de cobertura populacional pelo modelo saúde da família. São 101 equipes que atendem 290 mil habitantes para uma população total de 1 milhão e 400 mil habitante.

Assim, são dois movimentos perversos intercambiáveis: uma redução de leitos “públicos”, e um aumento de leitos privados. E, concomitantemente, uma ausência incompreensível de investimentos na rede básica de saúde. Que é tida, por todos os que pretendem entender um pouco de saúde pública, como o sub-sistema que orienta e coordena todo o sistema. Garantir os pressupostos constitucionais, investindo em um modelo de saúde pública estatal, faria, como diz o SIMERS, bem à saúde da população.

Lucio Barcelos
Médico Sanitarista
Novembro de 2010.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

A saúde vai para onde o dinheiro manda!


O debate a respeito da volta da CPMF, impulsionado por alguns governadores, não tem qualquer base de sustentação real. Nem do ponto de vista da arrecadação (a soma dos tributos arrecadados pela União, Estados e Municípios, neste ano, já ultrapassa 01 trilhão de reais. Em 2009 esse valor só foi alcançado no último mês do ano), e muito menos sob a ótica da melhora do acesso à saúde, como já ficou comprovado durante os anos em que o “imposto do cheque” funcionou.

Passados 20 anos da instituição do SUS, não creio na existência de um único cidadão, dentre os 187 milhões de brasileiros, que ainda leve a sério essa esparrela de que a crise ou falência da saúde é causada pela insuficiência de financiamento e pela má gestão dos serviços.

Podem sufocar a população com 10 CPMFs, CSSs ou o nome que queiram dar. A situação vai continuar exatamente como ela está: filas intermináveis, superlotação das emergências, demora humilhante para conseguir um atendimento.
Creio que já passou da hora de dar nome aos bois, quando se fala em sistema de saúde no Brasil.

Diga-se, de plano, que o sistema público de saúde funciona mal, porque é para ele funcionar mal. Faz parte do modelo de saúde que vigora no país. Aqui, quem manda é o setor privado de saúde. E o setor privado garante seus ganhos de duas formas: primeiro, sangrando o setor público com subsídios e mais subsídios. Provavelmente a soma dos subsídios diretos e indiretos dados aos Planos Privados e às instituições filantrópicas ultrapasse, em muito, o valor que seria arrecadado pela CPMF; segundo, reprimindo a expansão do setor público, custe o que custar. Não é por acaso que o único setor do sistema de saúde que é integralmente público é o da atenção primária. Justamente o que não é lucrativo (e que, mesmo assim, está sendo invadido pelas terceirizações e pela desqualificação dos seus trabalhadores). É dessa forma que se sustentam os 1.300 arremedos de Planos de Saúde Privados que pululam por esse país afora. É o mesmo expediente utilizado pela indústria de medicamentos e de equipamentos, que vive induzindo de uma forma brutal e acintosa a venda de seus produtos.

Os investidores privados são atraídos pelas áreas de maior rentabilidade. Não por acaso, aquelas de alta tecnologia e alto custo (não é, certamente, o caso das endemias ou das ações de promoção e prevenção da saúde).

Tem saída? Creio que sim. O problema é que vamos precisar de muita paciência e esperar pela mobilização da sociedade civil organizada.

Lucio Barcelos
Médico Sanitarista
Novembro de 2010.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Muito mais do mesmo!

Talvez os tempos já sejam outros. Mas penso que ainda é tempo de tecer alguns comentários sobre o segundo turno das eleições presidenciais.

Antes de qualquer coisa, eu não só não me preocuparia com os 36 milhões de eleitores que votaram nulo, branco ou que se abstiveram (29 milhões), como ousaria parabenizá-los. O que deveria ser motivo de nossa preocupação, na verdade, são os 99 milhões de almas que votaram em um dos dois candidatos. Esses sim, legitimaram, mais uma vez, um sistema que não lhes confere nenhum poder de decisão e sequer de fiscalização.

Perpetua-se, assim, uma falsa democracia, onde o poder efetivo não emana do povo. Ele é concedido pelo povo, mas não lhe é devolvido. Passada a farsa eleitoral, as decisões, não importando sua natureza, são tomadas pelos setores minoritários da sociedade, que detêm os meios de produção. A população somente é chamada para votar. Antes e depois, tudo o que acontece no país, acontece à sua revelia. Para o bem ou para o mal.
As eleições recém findas, refletindo o completo esgotamento das formas de representação vigentes, representaram nada mais do que o completo desprezo da “classe política profissional” pela população. O artificialismo, a marquetagem desavergonhada e a ausência absoluta de compromissos para com os cidadãos, são uma prova cabal desse fato. O mérito dessas eleições, possivelmente, tenha sido o fato de elas colocarem a nú, “como nunca antes nesse país” o fosso que separa os chamados poderes constituídos, do conjunto da população.

Creio que os 36 milhões de eleitores que, de alguma forma, não votaram em nenhum dos candidatos, merecem uma atenção especial.

Eles podem querer dizer que está na hora de começar a pensar no voto facultativo. Como ocorre nos países desenvolvidos. Ou que deveríamos definir reformas que não permitissem a eternização dos mesmos candidatos, como se profissionais fossem. Ou que deveríamos introduzir, como nos Estados Unidos o chamado “recall”. Isto é, a revogabilidade dos mandatos, pela vontade do povo. Ou, ainda que as formas de consulta popular, referendos e plebiscitos, não necessitassem mais de autorização expressa dos senhores parlamentares, bastando para isso a vontade dos cidadãos.

É hora de impulsionar a participação popular em todos os níveis. Basta de faz de conta democrático!

Lucio Barcelos
Médico Sanitarista – Ex-Secretário de Saúde de Porto Alegre
Novembro de 2010.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Jogo de Cena.

O problema da superlotação das emergências, sendo otimista, deve existir há mais de 10 anos. Como qualquer enfermidade não tratada, a tendência foi de uma piora gradativa, até chegar ao ponto crítico em que se encontra. Infelizmente, de uma certa forma, ela está “integrada” no quotidiano de sofrimentos das pessoas que vivem e dependem do SUS. Da mesma forma como estão “integradas” as filas nas unidades de atenção básica, além da espera por medicamentos, por exames complementares e por leitos hospitalares.

Nestas condições, ler ou ouvir notícias nas quais algumas organizações “sugerem” medidas para resolver – ou minimizar – o problema, soa a um profundo desconhecimento da realidade ou ao trato ligeiro das necessidades da população desassistida. Defender a contratação de mais médicos e a ampliação do número de vagas nas emergências é contraditório. Entendo necessária a contratação de mais médicos e outros profissionais da área, mas, ao mesmo tempo, creio temerário ampliar o número de leitos nas emergências.

A constatação de que essas providências não bastam e de que são necessárias medidas mais “profundas”, como uma “mudança de atitude” dos pacientes e dos profissionais, deve ser interpretada como outra visão equivocada das necessidades do sistema. Não creio que o problema da saúde pública – que, de fato, não é pública –, seja um problema de “atitude”. Acho que é bem mais um problema de prioridade de Governo e de decisão política sobre o que fazer e onde aplicar recursos na área da saúde. Já afirmei uma vez, e vou repetir: 83% dos leitos hospitalares do RS são privados. Isso já indica alguma coisa. Ou não?
E, finalmente, chegamos ao ponto central: é preciso ter uma rede básica melhor estruturada. A rede atual é precária, insuficiente e não resolutiva. Temos que investir pesado em uma rede de atenção primária, o que significa concursar profissionais e pagá-los dignamente, permitindo que possam dedicar-se integralmente à saúde pública. Essa proposta não é nova. Ela já foi formulada por diversos técnicos da área, dentre os quais me incluo. O problema, ou melhor, a questão, é colocá-la em prática, É executá-la. Simples assim. Quem se candidata a isso?

Não tenho dúvidas que, se os Governos (gestores) investirem em uma rede de atenção primária para valer, e, ao mesmo tempo, priorizarem o fortalecimento de estruturas de média e alta complexidade públicas, teremos, em pouco tempo, uma redução drástica dos sintomas de adoecimento grave pelos quais passa o SUS atualmente.

Lucio Barcelos
Médico Sanitarista – Ex- Secretário de Saúde de Porto Alegre
Outubro de 2010.


sexta-feira, 22 de outubro de 2010

HPS: ampliar ou descentralizar?

Existem questões que, em função de sua relevância, o poder público não deveria assumir uma posição, sem uma ampla consulta à população.

A decisão do Prefeito José Fortunati de desapropriar imóveis com a finalidade de ampliar o Hospital de Pronto Socorro, creio, é uma das questões que se inscreve nessa categoria, tendo em vista a possível existência de alternativas mais benéficas à população de Porto Alegre.

Uma possibilidade – talvez a mais importante – é a proposta de construção de um novo Hospital de Pronto Socorro na Zona Sul da cidade, que se constitui numa antiga reivindicação da população do município, até hoje não concretizada.

Afora esta, certamente, deve haver outras alternativas, sendo papel da Prefeitura tomar a iniciativa de constituir um Grupo de Trabalho com o objetivo de consolidá-las e apresentá-las à sociedade porto-alegrense.

É importante reafirmar, nesse contexto, que o principal problema do sistema de saúde de Porto Alegre é a inexistência de uma rede de Atenção Primária, que funcione efetivamente. O sistema que existe é precário, disperso e não resolutivo, forçando a população a “emergencializar” seus sofrimentos. A superlotação permanente dos serviços hospitalares de emergência é um reflexo dessa situação. O próprio HPS atende, diariamente, dezenas de cidadãos com problemas de saúde que deveriam ter sido resolvidos lá na atenção básica

Não estou sugerindo, com isso, que não se deva cogitar da ampliação do HPS ou da construção de um novo Hospital de Urgência/emergência. Como tudo na vida, a saúde é um sistema único e integrado. Não será resolvido apenas com a ampliação de serviços de emergência, como não será resolvido apenas com a ampliação de leitos hospitalares. Por último, a Prefeitura sabe que os salários pagos aos seus profissionais da saúde são baixos e que existe um déficit de mais de 350 funcionários no quadro do HPS, dos quais mais de 70 são médicos (dentre eles, anestesistas, traumatologistas, cardiologistas, neurologistas. Mais do que isso, pelo que eu sei, os médicos que recém ingressaram, estão na iminência de pedir demissão em razão da sobrecarga brutal de trabalho e pelos baixos salários que recebem.

Entendo que a população de Porto Alegre, e principalmente aquela que reside nos bairros circunvizinhos ao Hospital de Pronto Socorro, ficaria muito orgulhosa de ter sua opinião ouvida, a respeito de algo que vai estabelecer uma mudança significativa no seu dia a dia.

Lucio Barcelos
Médico Sanitarista – Ex-Secretário da Saúde de Porto Alegre
Outubro de 2010.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Publicado no Correio do Povo de 12/10/2010

O PSol gaúcho e as eleições 2010

GUILHERME BARCELOS *


No futebol, há um antigo - e sobretudo verdadeiro - dito, segundo o qual o time que entra em campo pretendendo empatar, perde. Trazendo esse valoroso ensinamento para o contexto das eleições 2010, entendo ser correto afirmar que o PSol gaúcho entrou em campo apenas para empatar, ou seja, para eleger uma deputada federal e um deputado estadual, e acabou sofrendo uma descomunal derrota nas urnas.

A campanha majoritária não existiu. O partido não organizou roteiros de campanha do candidato a governador (pelo Interior, sequer nas maiores cidades), vendo-se o postulante ao Palácio Piratini obrigado apenas a participar de debates no rádio e na TV e a aparecer poucos segundos no Horário Eleitoral Gratuito. Tão mirrada campanha ao Governo e ao Senado - e desta forma proposta e executada pelo próprio PSol/RS - não poderia traduzir-se em outro resultado senão na escassez geral de votos, em número significativamente menor do que os obtidos na eleição de 2006.

Igualmente, aqui no Estado, o PSol não se entregou de alma - e muito menos de corpo - na campanha de Plínio de Arruda Sampaio à Presidência da República, certamente devido ao inconformismo do grupo que domina e dirige o partido no Rio Grande do Sul com a derrota do candidato que defendia nas prévias nacionais do PSol. A experiência nos mostra que partidos políticos "rachados" invariavelmente naufragam em processos eleitorais. Aqui não foi diferente. E não só aqui: nas Alagoas, a ex-senadora Heloísa Helena, maior expoente do partido, não só foi omissa na campanha de Plínio, como flertou abertamente com a candidata verde Marina Silva. Partido rachado, o resultado veio em 3 de outubro, quando Heloísa ficou muito longe de conquistar uma das duas cadeiras que pleiteava para retornar ao Senado.

Afora todos esses fatores, há a cereja do bolo. Na reta final, após pregar ser o partido da coerência durante toda a campanha, defendendo que o eleitor não votasse no PT por conta das suas incoerentes alianças políticas, o PSol retirou uma das candidaturas ao Senado e passou a apoiar formalmente Paulo Paim, do mesmo PT que até o dia anterior era o suprassumo da incoerência.

Quem entra em campo para empatar, perde. Perdemos. Agora é hora de juntar os cacos e repensar o papel do PSol, principalmente no sentido de corrigir os rumos da sua construção, de um partido de dirigentes para um partido de bases.


* servidor público federal e filiado ao PSol


domingo, 12 de setembro de 2010

Artigo publicado na edição de ZH do dia 14 de setembro de 2010.
Eleições 2010: o real e o imaginário.

Talvez, se nós parássemos um pouco para pensar, chegaríamos à conclusão de que as eleições, da forma como hoje se desenvolvem, não são mais do que um dispendioso e triste espetáculo, sem qualquer significado para nós ou para o futuro da sociedade.

Não precisa ser nenhum cientista político para constatar que são poucos os que ainda dão crédito a esse sistema. Basta andar pelas ruas da cidade, conversar com as pessoas e a conclusão óbvia é essa. A distância entre a vida real, o dia a dia dos cidadãos e o sistema político que pretensamente os representa, é quilométrica. O que resta é a imagem de um sistema que, em décadas passadas, teve algum significado para a melhoria das condições de vida das pessoas. Um sistema falido, farto em desigualdades e, sobretudo corrupto. Não que não existam alguns candidatos, ou alguns partidos com bons propósitos. O problema é que não bastam bons propósitos. As questões que de fato interessam à sociedade não são resolvidas no âmbito do parlamento. Elas se resolvem na esfera do grande capital financeiro internacional. E algumas outras de média importância, são resolvidas pelas medidas provisórias do presidente/monarca de plantão. Restam ao parlamento, algumas questões do varejo, de menor importância, que nem sempre os parlamentares conseguem resolver.

Mas, lá no fundo, as pessoas ainda acreditam na hipótese da recuperação desse sistema. Elas precisam acreditar. Eu arriscaria a dizer que se trata de um mecanismo de auto-preservação. As pessoas não admitem que algo duramente conquistado há 30 ou 40 anos passados, hoje, não passe de uma farsa grotesca, sem volta. O problema real é que essas mesmas pessoas que rejeitam o sistema, na forma como ele se apresenta, ainda não vislumbram uma alternativa concreta à ele. E, na ausência de uma opção melhor, elas não querem e não podem abrir mão daquilo que uma vez conquistaram. Elas cairiam no vazio. Viveriam uma sensação de retrocesso. De perda de conquista. O que, de um ponto de vista formal, não deixa de ser verdadeiro. Então esse é o dilema: uma farsa que se mantém como um sistema de representação cuja solução se dá pelo surgimento de uma forma representativa mais justa, o que somente pode acontecer por força de uma ampla mobilização da própria sociedade.

O problema está exatamente nisso: o que colocar no lugar do atual sistema eleitoral e de representação parlamentar? Só a população, com sua mobilização pode nos dar uma resposta. Esperemos por ela! E que seja breve!

Lucio Barcelos
Médico Sanitarista e Ex-Secretário da Saúde de Porto Alegre
Setembro de 2010

sábado, 11 de setembro de 2010

A saúde pública e os leitos hospitalares.

Das duas uma. Ou eu não aprendi nada em 30 anos de dedicação à área da saúde pública, ou existe algo de muito errado na condução do processo de solução para o fenômeno danoso da superlotação das emergências, via aumento de leitos hospitalares.

Nunca ouvi dizer que o problema grave da superlotação das emergências tivesse qualquer relação ou correlação com o número de leitos hospitalares disponível para o distinto público.
Sucintamente, o que me ensinaram foi o seguinte:

1 – a explosão das emergências está diretamente relacionada com a baixa cobertura da rede de atenção básica ou atenção primária, (hoje propagada através do modelo da Estratégia Saúde da Família);

2 – essa explosão está também relacionada com o reduzido poder de resolução, da já mencionada baixa cobertura populacional da atenção básica, que se dá pelas formas precárias de contratação dos trabalhadores e dos baixos salários pagos aos mesmos;

3- essa situação de anomalia ou de disfunção do sistema empurra milhares de pessoas para os serviços de emergência. Não que elas sejam portadoras de algum quadro que caracterize uma emergência médica efetiva. Apenas que elas não são tolas. Elas perceberam que as unidades básicas, na maior parte das vezes, não resolvem seus problemas, que elas tem que ir na madrugada para uma fila, competir por uma ficha para uma consulta clínica, onde o médico vai solicitar algum exame, que demorará mais alguns meses para ser realizado, e ela terá que retornar e remarcar uma outra consulta para que o médico “traduza” o resultado do exame e lhe prescreva algum tratamento, caso necessário. É óbvio que nessas circunstâncias de espera vexatória e desrespeitosa, o cidadão elege uma emergência e, se tiver que esperar 08 ou 10 horas para ser atendido, paciência. Ali, ele sabe que o sistema, de uma forma distorcida, se “integra”: consulta, exame laboratorial, tratamento;

4- estudos mostram que mais de 50% daqueles que estão nas emergências poderiam ter seus problemas resolvidos na rede ambulatorial, se essa funcionasse efetivamente;

5 – outros estudos também provam que, se houver uma cobertura de 80% da população pelas equipes de atenção básica e, se essas equipes forem qualificadas e resolutivas, elas resolverão mais de 80% da demanda que recebem. Isto é, nestas condições, restariam para as emergências hospitalares, pronto atendimentos e Hospitais de Pronto Socorro, os casos que realmente necessitam de assistência imediata;

6 – O percentual de cobertura populacional pela atenção básica no Rio Grande do Sul é de sofríveis 39%. E, apesar de eu não conhecer nenhuma avaliação de sua efetividade, arriscaria a declarar, conhecendo a realidade do sistema básico de Porto Alegre, que a qualidade do atendimento é, sendo generoso, precária, quando não ineficaz. As filas de centenas de cidadãos na madruga, em frente aos postos de saúde, são um atestado disso;

7 – Dessa forma, não serão mais 100, 200 ou 300 leitos hospitalares que farão a diferença, naquilo que se refere ao funcionamento das emergências, ou ao funcionamento do sistema como um todo. Vale o mesmo raciocínio para as UPAS (Unidades de Pronto Atendimento). Se elas não estiverem vinculadas a uma expansão imediata e concomitante da rede básica, pode esquecer. Serão mais um trambolho, jogando dinheiro público pelo ralo;

Atenção, não estou defendendo que não se reativem os leitos dos hospitais Independência e Luterano. Estou afirmando que mais leitos não implicam, necessariamente, em uma melhora do funcionamento de um sistema público, integrado de saúde! A única alternativa efetiva é expandir e qualificar a atenção básica. Já!!!

Lucio Barcelos
Médico Sanitarista e Ex-Secretário de Saúde de Porto Alegre
Setembro de 2010.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Caos nas Emergências, desintegração do SUS.
Chega a ser obsceno. O desrespeito e o descaso com a saúde da população já ultrapassou todos os limites do suportável.

E o mais grave é que os governantes, conscientemente, fazem de conta que estão resolvendo um problema estrutural com medidas meramente paliativas e emergenciais.

Tudo bem que se tomem medidas emergenciais. Do jeito que está, é o mínimo que pode ser feito para minorar o sofrimento dos cidadãos que buscam socorro no sistema.
Só que, pela enésima vez, o problema não é as emergências. A superlotação crônica e cada vez menos controlável das emergências é, certamente, o sintoma mais visível do total desmantelamento do sistema de saúde no nosso Estado e no país. Da sua indigência e não funcionamento.

E querem saber por quê? Porque o governo federal entregou a saúde, de mão beijada, para o setor privado. E os governos dos Estados e dos municípios fazem coro ao governo federal.

No país, 70% do sistema de assistência à saúde, está nas mãos do mercado. No Rio Grande do Sul esse número chega aos espantosos 84%. A cobertura da atenção básica (Estratégia de Saúde da Família) que serviria como barreira e solução de 80% das demandas, nos ambulatórios, evitando as superlotações das emergências, é de ridículos 39%. A produção de medicamentos, de equipamentos e de insumos, está praticamente toda ela entregue ao setor privado. É ínfima a produção desses itens de alto custo/valor pelo Estado. Só para lembrar, no custo total da saúde, 20% é custo com medicamentos.

Essa relação de abandono da saúde pelo Estado, e de promiscuidade do público com o privado é, em primeira instância, o responsável pelo quadro catastrófico que temos assistido nos últimos anos.

São 1300 operadoras de planos privados que vivem estudando a melhor forma de burlar o SUS, transferindo suas responsabilidades para o Estado e brigando até a morte para não reembolsá-lo. São milhares de instituições privadas com certificado de filantropia que ludibriam o Estado, maquiando suas contabilidades e escolhendo os procedimentos que acham oportuno fornecer ao SUS. Somando essas ‘malandragens’ com as renuncias fiscais oficiais, devemos chegar a alguns bilhões de reais anuais.

É fácil resolver esse problema? Em parte sim, em parte não. Tem que ter um governo que defenda os interesses da maioria dos cidadãos e cumpra o que reza a Constituição Federal: saúde é um direito da cidadania e o Estado é responsável pela sua execução! De preferência fora da ingerência do mercado.

Lucio Barcelos
Médico Sanitarista
Ex-Secretário de Saúde de Porto Alegre
Agosto de 2010.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Escolha seu Candidato: mas não se apresse!

As eleições estão aí, batendo em nossa porta, insistentemente.

Apesar do descrédito generalizado, apontado em todas as pesquisas de opinião; apesar da desconfiança, também generalizada, em relação àqueles que são vistos como “políticos profissionais” e apesar do completo esgotamento do sistema eleitoral e da forma atual de representação parlamentar, não temos como não votar. Não nos foi dado esse direito. Voto obrigatório, restrições posteriores para quem não cumprir seu “dever cívico”, problemas à vista.
Dessa forma, com todos os “senões” ditos e não ditos, vamos votar.

Só acho que, antes de votar, devemos fazer uma pequena reflexão sobre como escolher nosso candidato, procurando reduzir ao mínimo, o risco de jogar nosso voto na lata do lixo. Antecipo que não será uma tarefa fácil.

Por precaução e por resguardo, creio prudente listarmos alguns critérios e/ou pré-requisitos, relacionados com o sistema de representação tal qual ele se apresenta e, por dever de militância, com a área da saúde, que considero essencial para melhorar as condições de vida da população. Não necessariamente em ordem de importância penso que só deveríamos votar em um candidato que:

1 – assuma como proposta prioritária a defesa do voto facultativo. Voto é um direito da cidadania e não um dever. Quem supõe que a população não tem discernimento para decidir em quem votar, não merece ser votado;

2 – assuma a defesa da proibição do instituto da reeleição. Em outros termos, os candidatos são eleitos por um único mandato e depois voltam para suas vidas e profissões normais. Política não é profissão é prestação de serviço;

3 – que apóie a revogabilidade dos mandatos dos parlamentares, a qualquer momento;

4 – que defenda que, uma vez eleitos, os deputados e senadores permanecerão ganhando o mesmo salário que recebem em suas atividades profissionais. Caso o cidadão estiver desempregado, recebe uma ajuda de custo do poder público para exercer seu mandato;

5 – na eventualidade de se eleger, assuma o compromisso de utilizar a estrutura de seu gabinete, exclusivamente para retribuir em serviços àqueles (associações, sindicatos, clubes) que o elegeram;

6 – que assuma a responsabilidade de lutar incansavelmente pelo fortalecimento e ampliação do setor público/estatal da saúde e pela imediata suspensão de todos os subsídios estatais, diretos e indiretos, concedidos ao segmento privado da saúde.

Considero que não sejam compromissos simples de assumir, mas penso que é um bom começo.

Lucio Barcelos
Médico Sanitarista
Ex-Secretário de Saúde de Porto Alegre
Agosto de 2010.
Alguém viu um SUS por aí?

Para começar, qualquer cidadão de boa vontade, percebe que nesse país se pratica uma política deliberada para impedir a consolidação de um sistema público de saúde.

Firmou-se uma unanimidade em relação aos “verdadeiros” problemas da saúde e sobre sua solução. Todo o mundo já está cansado de saber: o sistema é sub-financiado e mal gerido. A solução, é óbvio, é colocar mais dinheiro e melhorar a gestão. Dê preferência colocar mais dinheiro, que o resto vem ao natural! É o que apregoam os “especialistas”.

Os defensores dessa tese, arautos das meias-verdades, esquecem-se de informar ao distinto público, o seguinte:

1 – Hoje, praticamente todo o sistema de saúde está privatizado. E não era isso que havia sido combinado. A proposta inicial, era que ele seria um sistema estatal, complementado pelo sistema privado, em situações muito particulares. Para ser mais específico, a saúde não deveria, sob qualquer hipótese, ser tratada como um produto, uma mercadoria. Ela é um bem social, público. Neste caso, não tem como compatibilizar saúde com negócios. Não tem meio SUS, como não tem “meio grávida”. Ou bem é um ou bem é outro! O resto é mistificação, conversa fiada, para enganar os bem intencionados.

Só para exemplificar: hoje, no Rio Grande do Sul, 84% dos leitos hospitalares disponíveis para o SUS, pertencem ao segmento privado da saúde. E os míseros 16% públicos restantes, sofrem uma pressão contínua e intensa para que terceirizem seus serviços, precarizem suas relações de trabalho, transformem-se em OSCIPS, ou em Fundações Estatais de Direito Privado (a nova vaca sagrada do governo Lula), tudo, menos que continuem públicos.

Para completar esse quadro, não nos esqueçamos das renuncias fiscais concedidas pela União. Estima-se que sua soma (Filantropia, Planos Privados, Imposto de Renda) chegue aos 10 bilhões de reais/ano. É isso mesmo 10 bilhões de reais.

Isso posto, ficam registradas aqui, duas modestas sugestões, com o intuito de contribuir com a qualificação do sistema (que deveria ser) público de saúde.

Primeiro, condicionar a aprovação da EC 29 ao uso exclusivo dos novos recursos por ela definidos, no fortalecimento e ampliação de serviços público/estatais de saúde;

Segundo, num prazo de 04 anos abolir as renúncias fiscais. Reduzindo 25% das renuncias por ano, acho que dá tempo para as pobres instituições privadas se adequarem às regras do mercado e pararem de mamar nas tetas do Estado.

Lucio Barcelos
Médico Sanitarista
Ex-Secretário de Saúde de Porto Alegre

quarta-feira, 21 de julho de 2010

A derrocada em números:

Pesquisas de opinião, recentemente publicadas pela imprensa local, mostram que de 2002 a 2010, acorreu uma mudança significativa na percepção da população a respeito da saúde, O que era uma preocupação moderada, em 2002, passou a ocupar o primeiro lugar como fonte de preocupação em 2010 (34% da população entrevistada declarou que essa deve ser a principal prioridade do próximo governo).

A pergunta que deve ser respondida, é a seguinte: quais fatores contribuíram para uma mudança tão importante na percepção das pessoas?
Em meu ponto de vista, e sei que tem muita gente que não concorda comigo, a raiz do problema está localizada na compreensão equivocada da saúde como sendo um produto, ou seja, a saúde vista como um “bem de troca”, uma mercadoria, e não como um bem público, um direito dos cidadãos, que não pode, sob nenhuma hipótese, ser objeto de venda.

Enquanto nós não revertermos esse processo, onde a saúde é vista como, “mais um produto à venda no mercado”, nós não conseguiremos organizar um sistema qualificado e eficiente para atender a população. Da forma como está estruturado, o sistema de saúde funciona para “fazer dinheiro” e nada mais. Nestas condições, quem manda, quem regula e quem dita as regras é o “mercado”! O Estado detém cada vez menos serviços próprios e passa a ocupar um lugar de mero “avalista e transferidor de renda”, garantidor do sistema privado, alimentado por subsídios abundantes e indevidos.

Por isso, não basta investir mais dinheiro ou melhorar a gestão na saúde, se não superarmos esse modelo mercantilista. A saúde, ou é pública, ou não é saúde, é negócio.

No país, mais de 70% da oferta hospitalar é privada. A Atenção Básica, que deveria ser o centro orientador do sistema, não consegue cumprir seu papel. Os serviços de maior complexidade permanecem no centro do sistema e são predominantemente privados.

Aqui no Estado, como já é sabido, temos o governo que menos investe em saúde. Deveria aplicar 12% de suas Receitas Tributárias Líquidas, e aplica menos da metade disso. A Atenção Básica cobre apenas 39% da população.

84% dos leitos hospitalares que atendem usuários do SUS são privados e 72% dos recursos financeiros destinados ao pagamento das internações hospitalares vão para esses hospitais.
A situação é idêntica, quando falamos de serviços de diagnósticos e meios terapêuticos, e mais grave quando falamos de produção de medicamentos, equipamentos, pesquisa, produção tecnológica e ensino.

Até quando o Sistema Único de Saúde, público, de acordo com a Constituição Federal, vai suportar essa avalanche de políticas contrárias a sua existência?
O desafio é imenso. E eu não confiaria sua solução ao parlamento e muito menos aos governos dos entes federados. Porque eles só vão se mexer, quando pressionados por um amplo e poderoso movimento social.

Lucio Barcelos
Médico Sanitarista
Ex-Secretário de Saúde de Porto Alegre
Julho/2010

domingo, 4 de julho de 2010

Artigo publicado na seção Artigos da edição da ZH do dia 03 de julho

03 de julho de 2010

Senado, para quê?, por Lucio Barcelos*

Em 2010, de acordo com fontes governamentais, o Senado da República vai custar ao bolso dos contribuintes a bagatela de R$ 3 bilhões.

São 81 senadores, rodeados por uma corte de 6 mil funcionários. Em números absolutos, significa dizer que cada senador, anualmente, custa uma média de R$ 37 milhões aos cidadãos que pagam impostos. E, neste momento, depois de o governo ameaçar não aprovar os 7,7% para os aposentados, utilizando o mais do que desgastado argumento de uma possível quebradeira na Previdência, o Senado aprova um aumento de 25% no salário de seus funcionários. É uma atitude que dá uma medida da distância que separa a “Câmara Alta” da sociedade que ele deveria representar.

Do meu ponto de vista, já há muito tempo, o Senado passou a ser uma instituição ilegítima. O termo mais adequado seria “espúria”, mas, para não passar a ideia de intransigente e radical, fico com o “ilegítima”. Na verdade, creio que deveríamos ter uma representação unicameral, com candidatos eleitos para uma única legislatura, com mandados revogáveis a qualquer momento e com voto facultativo. Não creio que fosse resolver o problema da farsa parlamentar, mas, certamente, reduziria o nível de dissociação esquizofrênica e corrupção, hoje instalados na representação parlamentar.

O mais importante disso tudo é que poderíamos utilizar esses R$ 3 bilhões e mais os 25% de aumento, para melhorar nosso sistema público de saúde. Que, como é de conhecimento geral, continua em crise, com um modelo equivocado e sem um financiamento adequado.

Com esse dinheiro todo, poderíamos ampliar a rede básica de saúde, fator primordial na sustentação do sistema de saúde. Estimando que o custeio de uma Equipe de Saúde da Família gire em torno de R$ 360 mil/ano, seria plenamente possível manter mais 8.334 equipes/ano. Só para ter uma ideia, no Rio Grande do Sul existem 1,2 mil Equipes de Saúde da Família em atividade, correspondendo a 39% da cobertura necessária. Com esses valores, conseguiríamos alocar mais 1.876 equipes para uma cobertura ideal, e ainda sobrariam recursos para implantar mais 6.458 equipes em outros Estados. Ou ficaríamos com mais um naco desse dinheiro e colocaríamos em funcionamento o Laboratório Farmacêutico do Estado (Lafergs), que está, de uma forma criminosa, parado há mais de 20 anos, ali na Avenida Ipiranga.

*MÉDICO SANITARISTA, EX-SECRETÁRIO DE SAÚDE DE PORTO ALEGRE.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Estamos postando Artigo da advogada Maria Izabel Cattani, publicado no Jornal das Missões do município de Santo Ângelo

Violências contra o magistério (II)
Maria Izabel Cattani
izabelcattani@cattani.adv.br


O assunto volta à tona após noticia do último dia 16 sobre o assalto que uma professora sofreu dentro de uma sala de aula em uma escola estadual de ensino fundamental de Porto Alegre. Teve grande repercussão na imprensa do Estado. Exemplos: Juremir Machado da Silva (Correio do Povo,17/06/2010) escreveu: “Vida de professor transformou-se em atividade de alto risco”. Continua: “A situação é tão melancólica, para bem e para mal, que o assaltante não tinha munição (só um velho revólver). Roubou R$ 10,00 da professora. Essa quantia diz muito, diz tudo, grita como o sintoma de uma doença grave, um mal que está aí, bem aí, mas vai sendo empurrado com a barriga”. E mais: “Talvez a professora assaltada seja uma pessoa sensata, aos 58 anos de idade, e não vá para a escola com muito dinheiro na bolsa. Ou quem sabe, escolada, como todos nós, carregue apenas o dinheiro do transporte e o dinheiro do ladrão. Mais provável é que uma professora, na metade do mês, não tenha mais do que R$ 10,00 para carregar no bolso. Esse é o estado das coisas, o estado ao qual chegamos, o caos”. Paulo Sant’Ana (ZH,17/06/10) diz: “Para se ter uma idéia da penúria das professores, ela só tinha R$ 10,00 na sua bolsa e entregou-os ao ladrão. Que crise!”. Também nesse mesmo jornal (16/06/10) Humberto Trezzi afirma: “O diferente, nesse caso, é que a violência do aluno contra a professora do bairro Jardim Floresta se manifestou por meio de um assalto. Em 25 anos de profissão, jamais li ou ouvi falar de ato semelhante. Mas outros tipos de violência, sim, abundam na relação aluno- professores”. Ora, além da violência física e verbal que os professores vêm sofrendo nas escolas, há aquela orquestrada pelas políticas governamentais que não priorizam a educação e que são, sem dúvida, a origem desses fatos agora lamentados pelos jornalistas. Portanto, a violência não é só na “relação aluno-professores” conforme comentado mais acima, mas governos-professores, o que não é novidade nenhuma. Os professores há muito tempo vêm lutando contra essa situação de desprezo do Estado e de alguns setores privilegiados da sociedade. Não é por acaso, pois, que a coluna de hoje tenha o mesmo titulo da que foi publicada em 04/04/09 quando já comentávamos sobre as muitas violências contra o magistério. Entre elas, dizíamos que a política salarial é a primeira das formas de violência contra o professor, eis que o salário é parte integrante da carreira. Em uma sociedade em que perversamente o dinheiro é um valor máximo, essa situação fulmina injustamente a dignidade profissional dos mestres, pois é um meio iníquo de não reconhecer a sua fundamental, indiscutível e indubitável função social na formação de todos os cidadãos. Da mesma maneira, as demais conquistas dos educadores estão ameaçadas: o plano de carreira com a tal meritocracia, as formas democráticas de educação e as de formação e atuação na sua vida profissional e sindical, entre outras. Neste quadro, o assalto sofrido pela professora em plena sala de aula é mais um, portanto não o único, dos agravantes na atual situação da educação pública do Estado.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Artigo publicado na edição da ZH de 07 de junho de 2010 .

ARTIGOS

A diferença de classe e a dupla porta, por Lucio Barcelos *

A ação impetrada pelo Conselho Regional de Medicina do RS e aprovada pelo Supremo Tribunal Federal, reeditando a famigerada “diferença de classe” nas internações e demais procedimentos em hospitais contratados/conveniados pelo Sistema Único de Saúde, representa mais um ataque ao já fragilizado sistema público de saúde em nosso Estado e em nosso país.

Essa prática, que chegou a vigorar no início dos anos 90, foi banida do sistema, pelo simples fato de atentar frontalmente contra a Constituição Federal, rompendo com os preceitos elementares de igualdade de tratamento entre os usuários do SUS. Assim, acumulam-se medidas que dificultam cada vez mais o acesso da ampla maioria da sociedade brasileira que, por pobre, não pode pagar diferença de classe. Esse movimento tende a favorecer a parcela da população que detém planos de saúde. Planos que, em sua grande maioria, não são mais do que simulacros, verdadeiros “atravessadores” do SUS, desrespeitando suas diretrizes básicas. Dessa forma, de medida discricionária em medida discricionária, cristaliza-se uma situação que é o inverso daquilo que o sistema público, ao ser criado, pretendia eliminar.

Só para lembrar, em setembro de 2008, ingressamos com uma representação junto ao Ministério Público Estadual e Federal, questionando a existência da chamada “dupla porta” de acesso dos pacientes aos hospitais contratados pelo SUS.

A dupla porta é, de fato, uma expressão do tratamento discricionário que é dado aos pacientes do SUS em relação aos segurados dos “planos de saúde” que utilizam o SUS sem ressarci-lo. A discriminação não se limita ao acesso, à existência de portas diferentes para a entrada no hospital. Ela se estende aos cuidados médicos, aos cuidados de enfermagem e ao tipo de hotelaria ofertado a esses diferentes pacientes.

Os hospitais contratados/conveniados pelo SUS devem cumprir as determinações constitucionais e infraconstitucionais (Lei 8.080). E a Constituição e a Lei 8.080 são claras neste aspecto, não deixando margem a interpretações: deve ser “garantido o acesso universal e igualitário às ações e serviços para a promoção, proteção e recuperação da saúde”.

Por último, não me espanta a decisão, uma vez que ela é tomada pela mesma Corte (ou por parte dela) que há poucas semanas atrás decidiu que a tortura é equivalente a crime político e, portanto, passível de anistia, contrariando um entendimento universal de que essa prática é inaceitável em qualquer regime ou sistema social do mundo.
*MÉDICO SANITARISTA

domingo, 30 de maio de 2010

Saúde: quem segura as seguradoras?
Pouca gente sabe, mas em junho de 1998 – há mais de 11 anos, portanto – foi aprovada a Lei 9.656, mais conhecida como Lei dos Planos Privados, a qual determina expressamente que os procedimentos praticados nos serviços do SUS, em paciente que tenha plano privado de saúde, devem ser ressarcidos aos cofres públicos.
Portanto, e para que fique bem claro, tudo aquilo que é gasto pelo SUS (serviços próprios ou contratados), em razão de procedimentos praticados em pacientes que têm plano privado de saúde é de obrigatório ressarcimento, legalmente previsto, pelas empresas que operam Planos Privados de Saúde.
Em tese, de acordo com o “espírito da lei” originalmente aprovada, deveriam ser ressarcidos praticamente todos os serviços hospitalares eletivos e de urgência/emergência, atendimentos ambulatoriais de alto custo (hemodiálise, quimioterapia, radioterapia), medicamentos de uso excepcional, etc.
Mas, como o espírito da lei, em nosso país, na maior parte das vezes, teima em não se impor, o que aconteceu nesses 11 anos foi um longo e vergonhoso processo de mutilação da Lei 9.656. De tal forma que hoje, 43 Medidas Provisórias depois, editadas para favorecer as seguradoras de saúde, e contando com a ajuda inestimável da ANS, o que restou para ser ressarcido são as internações eletivas. Mesmo essas que representam um milésimo dos custos iniciais a serem reembolsados, são sistematicamente questionadas juridicamente pelas seguradoras.
Pode parecer inacreditável, mas é assim mesmo. Os Planos Privados de Saúde vivem de parasitar o Sistema Público de Saúde. Não é por outra razão que o Brasil transformou-se no segundo maior mercado de Planos Privados do mundo. Os custos desses Planos são relativamente baixos em função da prática da transferência dos riscos e dos procedimentos de alto custo para o que resta de sistema público de saúde no país. O mercado dos planos, caso utilizassem somente seus recursos próprios, não deveria passar dos 5 a 6% da população. Hoje, eles conseguiram o milagre de cobrir 25% da mesma. Na real, o cidadão que tem um Plano, na maior parte das vezes, está pagando para passar na frente (furar a fila) do SUS. E não para ser atendido integralmente pelo “seu” Plano de Saúde.
Creio que está na hora de a sociedade civil organizada dar um basta a essa situação e iniciar uma campanha pública pela retomada do ressarcimento ao SUS, da forma como ele foi preconizado em seu início.

Lucio Barcelos – Médico Sanitarista.
Maio de 2010.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Estamos postando a íntegra do e-mail enviado e divulgado pelo jornalista Paulo Sant'Ana em sua coluna do dia 26/maio/2010.

Prezado Paulo Sant'Ana:
Meus parabéns pela tua coluna de hoje. Estou de pleno acordo com a caracterização de "vergonhosa" que dás para as "filas" das cirurgias eletivas. É patético, mas um cidadão, para conseguir uma simples cirurgia de varizes, que deveria ser para o dia seguinte, fica numa "fila" de espera de 02, 03 ou até 04 anos. O que dizer de uma cirurgia de alta complexidade, de um exame laboratorial mais complexo, ou das filas reais, do cotidiano das pessoas que se amontoam na frente das unidades de saúde em plena madrugada, para conseguir uma simples consulta com um clínico geral. Não é preciso dizer que são pessoas pobres, em geral idosas ou mulheres com crianças de colo. É um desrespeito absoluto com os direitos mais elementares de qualquer cidadão.
Agora, se você me permite complementar teu raciocínio, acho que devemos nos perguntar porque existe essa escassez de profissionais, equipamentos e leitos. Certamente não é por falta de recursos financeiros: juntos a união, os governos estaduais e municipais, nos primeiros quatro meses e vinte e quatro dias desse ano da graça de 2010, já arrecadaram a fabulosa quantia de R$ 472 bilhões em impostos. É isso mesmo! 472 bilhões de reais em impostos pagos pela população que trabalha. E vem me dizer que não pode resolver o problema das filas reais ou virtuais da saúde pública. Que não pode resolver o problema da falta crônica de medicamentos de uso contínuo. De órteses e próteses. De medicamentos para o tratamento da AIDS.

O problema é que essa é uma briga de cachorro grande. Primeiro, porque o sistema público, na verdade é subordinado ao sistema privado, onde o que impera é a lógica do lucro e não a do bem estar da população. As grandes empresas de seguros (planos) de saúde vivem parasitando o Estado, sugando recursos públicos através da transferência de seus "clientes" para o que resta de sistema público de saúde. Segundo que o Estado brasileiro não produz um milésimo das necessidades da população em termos de medicamentos, vacinas e outros insumos. Quem produz os medicamentos e, ao mesmo tempo, o incentivo a "medicalização" da saúde são as grandes multinacionais do ramo. Ocorre o mesmo fenômeno na área de produção de equipamentos hospitalares e de equipamentos para as áreas de diagnóstico (imagens principalmente) e terapêuticos (hemodiálise, quimio e radioterapia, etc.).

Então, vivemos em um mundo onde a saúde é regida direta e completamente pelos interesses de grupos privados e não por um "Estado" que priorize os interesses gerais da população.
Acho legal sugerir que não se faça eleição enquanto não forem resolvidos os problemas da saúde. Até por que, essas eleições que aí estão, não passam de uma grande farsa, onde as cartas já foram dadas e os vencedores já são conhecidos.

Na verdade, ou a população se move e exige a reformulação total do sistema de saúde, colocando-o a serviços de todos, ou vamos continuar com pequenas medidas mitigadoras, que não resolvem o problema de fundo da saúde: sua natureza pública ou privada.

Um grande abraço.

Lucio Barcelos - Médico Sanitarista
Mrembro do Conselho de Representantes do SIMERS/RS
Ex- Secretário da Saúde de Porto Alegre de Gravataí e de Cachoeirinha
Ex- Presidente do Conselho Estadual de Saúde e Vice-Presidente do Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde.
Vereador suplente pelo PSOL em Porto Alegre

domingo, 23 de maio de 2010

Custa respeitar os cidadãos?

Dei-me ao trabalho de contar. Eram 43 veículos, entre ônibus, micro-ônibus, vans, mini-vans, ambulâncias e automóveis. Todos no entorno do Hospital de Clínicas, principalmente na Praça.Major Joaquim de Queiroz, lindeira à Rua Jerônimo de Ornellas. Considerando uma média de 10 pessoas por veículo, teremos aproximadamente 430 pacientes por dia, 8.600 por mês, em busca de consulta médica, vindas dos mais diversos municípios do interior do Estado.

Certamente, não é uma visão alentadora. E, como não poderia deixar de ser, rapidamente organizou-se um mercado em torno dessa massa de gente: ambulantes vendendo lanches e todo o tipo de bugigangas, restaurantes “conveniados” com os condutores dos veículos que devem receber algum “por fora” para indicar seus serviços, facilitadores de senhas para consultas e outros serviços do gênero.

Situação idêntica acontece nas vizinhanças do Grupo Conceição, dos hospitais da Santa Casa e do Hospital da PUC. A situação para os moradores de Porto Alegre não é diferente. As filas são uma constante, a falta de medicamentos de uso continuado é permanente e o tempo de espera é ultrajante.

São pessoas tratadas sem o mínimo de respeito e dignidade. Precisava ser assim? O poder público não poderia resolver essa situação de tal forma que as pessoas tivessem um acesso digno ao sistema (dito público) de saúde? O que é necessário para que isso seja feito? Falta conhecimento técnico ou capacidade gerencial? Não creio que sejam essas as razões para a permanência desse estado de coisas.

Olhando mais de perto, pode-se facilmente perceber que essa desordem ou, se preferirem, essa desorganização aparente, que impede o acesso direto e imediato ao sistema de saúde, joga água no moinho das centenas de seguradoras de saúde privada existentes no país. Assim, fica mais fácil de compreender. A esparrela da falta de recursos governamentais é simplesmente ridícula. De janeiro a abril deste ano foram arrecadados R$ 256.889 bilhões pelo governo federal. A soma total arrecadada, acrescentando os Estados e Municípios é de R$ 456.481 bilhões de reais. Não tenho dúvidas de que com esse dinheiro todo, por mais PACs que inventem, dá para custear uma saúde digna para a população. Basta o governo eleger a saúde como uma prioridade efetiva, real, e não, como diz o ditado “da boca para fora”. De olhar para a população e resolver um dos problemas mais dramáticos que ela enfrenta nos dias atuais.

Lucio Barcelos - Médico Sanitarista
Maio de 2010.

domingo, 9 de maio de 2010

Uma decisão inacreditável.

A decisão do Supremo Tribunal Federal em relação à revisão da Lei da Anistia é uma ofensa ao povo brasileiro. É inconcebível que existam cidadãos que possam cogitar do perdão ou esquecimento de práticas de tortura e outras sevícias que resultaram na morte e/ou no desaparecimento.de centenas de presos políticos no Brasil. Aliás, a tortura é um ato repugnante, contra a humanidade, seja ela praticada contra presos políticos ou contra presos comuns.

Eu fui preso político em 1970 e em 1976. Passei mais de 01 ano na prisão (no DOPS, em uma Ilha do estuário do Guaíba, que serviu de prisão aos presos políticos durante um período e no Presídio Central). Fui posto nu, vendado e levei choques elétricos. Fui julgado pela 1ª Auditoria da 3ª CJM (Justiça Militar Federal). Numa primeira vez fui considerado não culpado e numa segunda vez (eu sou persistente) fui condenado. O que aconteceu com a grande maioria dos presos políticos foi milhões de vezes pior do que aquilo pelo que passei. Muitos foram torturados por meses a fio, ficaram mutilados física ou mentalmente, muitos foram mortos e de muitos até hoje não se sabe o destino, por mais que as famílias tentem encontrá-los, para dar-lhes um sepultamento digno.

Eu não sou revanchista. Nunca fui. E tenho convicção de que em sua ampla maioria os presos políticos não o são. Eu só penso que os torturadores devem vir à luz do dia, devem ser identificados e julgados. Por um tribunal civil, em tempos de democracia. O que eu reivindico, e imagino que deva ser a reivindicação da maioria dos presos políticos, é, nada mais, nada menos que se faça justiça. Se nós fomos presos, julgados e condenados pelas leis da ditadura, nada mais justo do que querer que os torturadores, independente de se pertenciam às forças armadas ou a polícia (DOPS) sejam identificados e julgados pelas barbáries que praticaram. Eles agiram na escuridão, protegidos pelo aparelho de Estado repressor. Os presos políticos, em sua maioria jovens estudantes ou trabalhadores não tinham nada a seu favor a não ser sua disposição de lutar contra a ditadura e o apoio de uma parcela da população. Que vivia amedrontada e calada por essa mesma repressão.

Não se trata de revanchismo. Trata-se de um ato de redenção. De a nação brasileira acertar suas contas com o seu passado. Essa é uma chaga muito profunda, que afeta até hoje a forma como funciona e se move nossa sociedade. Julgar os torturadores é um ato de libertação da nação brasileira. Só assim ela poderá se ver por inteiro, sem nada a esconder ou do que se envergonhar.

Lucio Barcelos
Médico Sanitarista
Maio de 2010

terça-feira, 4 de maio de 2010

O dilema da Ficha Limpa

Muito se tem debatido em torno da chamada “Ficha Limpa”, Projeto de Lei Complementar 518/09 (que pode ser votado hoje – 04/05/2010 – na Câmara dos Deputados) cujo objeto, em síntese, é a inelegibilidade de candidatos com condenações judiciais.

O argumento da maior parte dos seus críticos gira em torno da inconstitucionalidade do projeto (por ser afrontoso ao princípio da presunção da inocência). Segundo tal princípio, estampado na Constituição da República, somente pode ser considerado culpado o cidadão que tiver em contra si sentença penal condenatória transitada em julgado. Explicando de forma mais simples, uma condenação judicial, de natureza criminal, da qual não caiba mais recurso para qualquer instância.

O projeto não me parece, prima facie, desagradável, e a despeito de efetivamente padecer do vício que lhe imputam – inconstitucionalidade –, este não é, para mim, motivo suficiente a bani-lo.

Primeiramente, entendo que o argumento de constitucionalidade ou inconstitucionalidade de alguma norma, em discussão travada no seio de um partido socialista, não é o mais próspero. A Constituição da República de 1988 foi elaborada e promulgada por Assembleia Nacional Constituinte burguesa, ou seja, por um Estado burguês. Defendê-la, portanto, nada mais é do que defender o status quo deste Estado liberal, máxime em se tratando de regras atinentes a direitos políticos. Defender esse projeto não deixa de ser também uma defesa de uma instituição burguesa, qual seja, o seu parlamento, mas, considerando que no horizonte sequer se vislumbra o ruir do Estado liberal (ainda mais se levarmos em conta que o PSOL faz somente o jogo institucional e o MST e outros movimentos sociais estão calados e inertes), a defesa da ideia se afigura adequada.

Ainda, eventual inconstitucionalidade do projeto da “Ficha Limpa”, por si só, não me faz contrário ao projeto. Isso porque a Constituição é afrontada desde a sua promulgação, em outubro de 1988, e na grande maioria, senão em todos os casos, contrariamente aos interesses dos menos favorecidos. Um exemplo bastante claro e gritante é a limitação dos juros a 12% ao ano. Regra expressa, definitiva e cristalina como água. Todavia, o sistema financeiro/bancário jamais respeitou a Constituição quanto a esse aspecto. Essa limitação de juros foi extirpada da Constituição em 2003, mas nos 15 anos que permaneceu vigente, jamais foi respeitada, desrespeito esse sempre referendado pelo STF.

Então, se a Constituição vem sendo violada desde sempre, que o seja em prol de um projeto anticorrupção também. É certo que esta posição é incontornavelmente pragmática, mas diante desse mal que sangra desenfreadamente o erário, permitindo a eleição de políticos ímprobos, desonestos e desqualificados, tenho que, como já dito, é bastante apropriado o projeto.

Apenas a título de informação, o parecer da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, quanto ao Projeto de Lei da “Ficha Limpa”, é no sentido da plena constitucionalidade do projeto.

Por fim, não me parece que a “Ficha Limpa”, ao ampliar o leque de inelegibilidades, seja um limitador da esfera de discussão política, como o é, por exemplo, a denominada cláusula de barreira. A construção desse diálogo deve partir não só dos movimentos institucionais – processo eleitoral e parlamento – mas também do PSOL e demais partidos de esquerda e, principalmente, dos movimentos sociais, hoje, infelizmente, em estado de letargia.

De qualquer forma, a discussão é vazia, pois o projeto dificilmente vai passar no Congresso (corporativismo, sabemos como é, os nossos nobres parlamentares não vão querer barrar as próprias candidaturas).

Guilherme Barcelos
Bacharel em Direito
Analista Judiciário do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região

sexta-feira, 30 de abril de 2010

A “LISTA SUJA” DOS POLÍTICOS

Estou impressionado com a Associação dos Magistrados do Brasil. A entidade propõe a institucionalização da chamada lista suja, que serviria para barrar candidaturas de quem responde a processos criminais, ou com implicações penais, na Justiça, mesmo sem condenação trânsita. Sustentando este projeto, a AMB – sob o ponto de vista da obviedade - está violentando a Constituição. Me impressiona o apoio justamente porque os juízes sabem dessa violação constitucional.

Seja como for, este simulacro de SPC penal, supostamente seguindo a lógica do interesse público, deveria alcançar outros personagens, além dos políticos. Que tal ministros, secretários, banqueiros, proprietários dos meios de comunicação, empresários... juízes? Todos são, afinal de contas, ligados a atividades nas quais o poder público é diretamente interessado.

Penso que a direção da AMB - vez mais - entremostra o seu perfil repressivo-voluntarista, adquirido na academia e reproduzido de modo acrítico e irrefletido, coisa incompatível com aquilo que podemos chamar de "contraditório social", princípio tão arduamente logrado pelos humanos.
A posição dos magistrados, à primeira vista, parece uma descabida pretensão à condição de corregedores morais da sociedade, o que por si já seria teratológico. Penso, todavia, que se trata de mais um daqueles movimentos periféricos (nem tão periférico assim...) - consciente ou não - visando desconstituir a política como fator de mediação. Daqui a pouco vão surgir vozes exigindo concurso público para o parlamento ou para o executivo, buscando enquadrar em definitivo a ideologia na técnica. É o sonho inconfessável do mercado.

Nem mesmo a direita, adesista de primeira ora a teses esdrúxulas como essa, está se dando conta que uma vez suprimida a mediação política como fator de estabilidade do estado burguês, as possibilidades de subvertê-lo acabam se oferecendo por uma via que pode lhe escapar do controle. Por perceber isso, é que Tarso Genro (a direita inteligente e civilizada), renegando "peremptoriamente" a sua origem marxista, apelou no sentido de que "é preciso proteger o PT". Claro, é o Partido dos Trabalhadores quem pode deter os movimentos sociais. É ele, em última análise, o fiador do sistema.

O fato é que o establishment não se contenta mais em contar com a política, que ainda imprime ao Estado um traço, mesmo insignificante, de ação social e muitas vezes cria empecilho à sanha empresarial de transferência da renda pública aos balancetes privados. A quer fora de cena em definitivo, afastando a intervenção pública para que o rentismo não perca tempo nem dinheiro com questões sociais. E, obviamente, fique voltado com exclusividade ao mercado e às relações – digamos – não tão republicanas, nas quais, por exemplo, o BNDES se encarrega de financiar a iniciativa privada.
A tentativa de "limpar" as eleições vem subjacente à noção de Estado mínimo, tão caro ao liberalismo. É mais uma investida da classe dominante para desqualificar o âmbito político, no qual - mesmo que minimamente - as pessoas ainda podem ser confrontadas com a barbárie da organização social que integram.

A atitude da Associação dos Magistrados, além de tudo, equivale a um estupro à Constituição Federal. Perpetrado justamente por quem a deveria colocar acima de qualquer coisa. Inclusive de maiorias eventuais e alienadas.

A “ficha limpa”, de resto, não antecipa a certeza da interdição de atos de corrupção. Os escândalos que atualmente cercam o DETRAN, supostamente foram protagonizados por agentes públicos que, por certo, ostentavam um “prontuário” ilibado!

Fabrício Bittencourt Nunes
Advogado
Psol Dom Pedrito

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Os espertalhões e o Patrimônio Público.


Tem certas coisas nas quais a gente tem dificuldade em acreditar. Por exemplo, este Projeto de Lei que vincula ou subordina a reestruturação da FASE (Fundação de Atendimento Socioeducativo) à alienação ou permuta do terreno de 73,5 hectares na Av. Padre Cacique.

É um negócio de maluco, ou de gente que não tem a menor noção do valor de um bem público.

Só para deixar claro. Como se diz costumeiramente, “uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa”. A proposta de descentralização da FASE é uma proposta muito importante e estamos todos, que eu saiba, a favor da mesma. Só que o custo de 09 unidades descentralizadas para a FASE deve ficar, numa estimativa para cima, em cerca de 01 milhão cada uma. O que resulta em 09 milhões. Será que o governo do “déficit zero”, não tem míseros 09 milhões para melhorar as condições de atendimento aos menores infratores? Acho que sim!

Bem, aí os malandros do governo, que se acham muito espertos, misturam em um mesmo Projeto de Lei, a reestruturação da FASE, com a venda de uma ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE, que é um bem público, que não poderia sequer ter cogitada a sua venda, pelo valor de R$ 79 milhões.

O cidadão que está de fora, olha o Projeto de Lei e pensa: “é, não tem jeito, para melhorar o atendimento aos menores, tem que vender o terreno da Padre Cacique”. O que, na verdade, é uma grande empulhação. É um contrabando vergonhoso, uma venda casada de má fé. São dois processos totalmente independentes. Um atende a melhoria da vida de algumas centenas de menores. Ótimo, parabéns ao governo! O outro é uma negociata com o objetivo de, mais uma vez, entregar, de mão beijada, para os especuladores imobiliários, uma área com mais de uma dezena de nascentes, flora, fauna e mata próprios, prédios históricos e mais de 1.500 famílias residentes.

Assim não dá. O governo tem a obrigação de respeitar o Patrimônio Público, conforme determina a lei. Na Câmara de Vereadores de Porto Alegre, estamos propondo que o governo do Estado encaminhe dois projetos em separado. Um sobre a reestruturação da FASE, com o detalhamento técnico necessário, e outro sobre a “venda” da Área de Preservação Permanente, caso ele insista nesse despropósito.

Que se faça uma consulta à população para que ela diga o que pensa a esse respeito. Sem urgência e sem açodamento.

Lucio Barcelos
Médico Sanitarista
Vereador Suplente de Porto Alegre.
abril de 2010