domingo, 30 de maio de 2010

Saúde: quem segura as seguradoras?
Pouca gente sabe, mas em junho de 1998 – há mais de 11 anos, portanto – foi aprovada a Lei 9.656, mais conhecida como Lei dos Planos Privados, a qual determina expressamente que os procedimentos praticados nos serviços do SUS, em paciente que tenha plano privado de saúde, devem ser ressarcidos aos cofres públicos.
Portanto, e para que fique bem claro, tudo aquilo que é gasto pelo SUS (serviços próprios ou contratados), em razão de procedimentos praticados em pacientes que têm plano privado de saúde é de obrigatório ressarcimento, legalmente previsto, pelas empresas que operam Planos Privados de Saúde.
Em tese, de acordo com o “espírito da lei” originalmente aprovada, deveriam ser ressarcidos praticamente todos os serviços hospitalares eletivos e de urgência/emergência, atendimentos ambulatoriais de alto custo (hemodiálise, quimioterapia, radioterapia), medicamentos de uso excepcional, etc.
Mas, como o espírito da lei, em nosso país, na maior parte das vezes, teima em não se impor, o que aconteceu nesses 11 anos foi um longo e vergonhoso processo de mutilação da Lei 9.656. De tal forma que hoje, 43 Medidas Provisórias depois, editadas para favorecer as seguradoras de saúde, e contando com a ajuda inestimável da ANS, o que restou para ser ressarcido são as internações eletivas. Mesmo essas que representam um milésimo dos custos iniciais a serem reembolsados, são sistematicamente questionadas juridicamente pelas seguradoras.
Pode parecer inacreditável, mas é assim mesmo. Os Planos Privados de Saúde vivem de parasitar o Sistema Público de Saúde. Não é por outra razão que o Brasil transformou-se no segundo maior mercado de Planos Privados do mundo. Os custos desses Planos são relativamente baixos em função da prática da transferência dos riscos e dos procedimentos de alto custo para o que resta de sistema público de saúde no país. O mercado dos planos, caso utilizassem somente seus recursos próprios, não deveria passar dos 5 a 6% da população. Hoje, eles conseguiram o milagre de cobrir 25% da mesma. Na real, o cidadão que tem um Plano, na maior parte das vezes, está pagando para passar na frente (furar a fila) do SUS. E não para ser atendido integralmente pelo “seu” Plano de Saúde.
Creio que está na hora de a sociedade civil organizada dar um basta a essa situação e iniciar uma campanha pública pela retomada do ressarcimento ao SUS, da forma como ele foi preconizado em seu início.

Lucio Barcelos – Médico Sanitarista.
Maio de 2010.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Estamos postando a íntegra do e-mail enviado e divulgado pelo jornalista Paulo Sant'Ana em sua coluna do dia 26/maio/2010.

Prezado Paulo Sant'Ana:
Meus parabéns pela tua coluna de hoje. Estou de pleno acordo com a caracterização de "vergonhosa" que dás para as "filas" das cirurgias eletivas. É patético, mas um cidadão, para conseguir uma simples cirurgia de varizes, que deveria ser para o dia seguinte, fica numa "fila" de espera de 02, 03 ou até 04 anos. O que dizer de uma cirurgia de alta complexidade, de um exame laboratorial mais complexo, ou das filas reais, do cotidiano das pessoas que se amontoam na frente das unidades de saúde em plena madrugada, para conseguir uma simples consulta com um clínico geral. Não é preciso dizer que são pessoas pobres, em geral idosas ou mulheres com crianças de colo. É um desrespeito absoluto com os direitos mais elementares de qualquer cidadão.
Agora, se você me permite complementar teu raciocínio, acho que devemos nos perguntar porque existe essa escassez de profissionais, equipamentos e leitos. Certamente não é por falta de recursos financeiros: juntos a união, os governos estaduais e municipais, nos primeiros quatro meses e vinte e quatro dias desse ano da graça de 2010, já arrecadaram a fabulosa quantia de R$ 472 bilhões em impostos. É isso mesmo! 472 bilhões de reais em impostos pagos pela população que trabalha. E vem me dizer que não pode resolver o problema das filas reais ou virtuais da saúde pública. Que não pode resolver o problema da falta crônica de medicamentos de uso contínuo. De órteses e próteses. De medicamentos para o tratamento da AIDS.

O problema é que essa é uma briga de cachorro grande. Primeiro, porque o sistema público, na verdade é subordinado ao sistema privado, onde o que impera é a lógica do lucro e não a do bem estar da população. As grandes empresas de seguros (planos) de saúde vivem parasitando o Estado, sugando recursos públicos através da transferência de seus "clientes" para o que resta de sistema público de saúde. Segundo que o Estado brasileiro não produz um milésimo das necessidades da população em termos de medicamentos, vacinas e outros insumos. Quem produz os medicamentos e, ao mesmo tempo, o incentivo a "medicalização" da saúde são as grandes multinacionais do ramo. Ocorre o mesmo fenômeno na área de produção de equipamentos hospitalares e de equipamentos para as áreas de diagnóstico (imagens principalmente) e terapêuticos (hemodiálise, quimio e radioterapia, etc.).

Então, vivemos em um mundo onde a saúde é regida direta e completamente pelos interesses de grupos privados e não por um "Estado" que priorize os interesses gerais da população.
Acho legal sugerir que não se faça eleição enquanto não forem resolvidos os problemas da saúde. Até por que, essas eleições que aí estão, não passam de uma grande farsa, onde as cartas já foram dadas e os vencedores já são conhecidos.

Na verdade, ou a população se move e exige a reformulação total do sistema de saúde, colocando-o a serviços de todos, ou vamos continuar com pequenas medidas mitigadoras, que não resolvem o problema de fundo da saúde: sua natureza pública ou privada.

Um grande abraço.

Lucio Barcelos - Médico Sanitarista
Mrembro do Conselho de Representantes do SIMERS/RS
Ex- Secretário da Saúde de Porto Alegre de Gravataí e de Cachoeirinha
Ex- Presidente do Conselho Estadual de Saúde e Vice-Presidente do Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde.
Vereador suplente pelo PSOL em Porto Alegre

domingo, 23 de maio de 2010

Custa respeitar os cidadãos?

Dei-me ao trabalho de contar. Eram 43 veículos, entre ônibus, micro-ônibus, vans, mini-vans, ambulâncias e automóveis. Todos no entorno do Hospital de Clínicas, principalmente na Praça.Major Joaquim de Queiroz, lindeira à Rua Jerônimo de Ornellas. Considerando uma média de 10 pessoas por veículo, teremos aproximadamente 430 pacientes por dia, 8.600 por mês, em busca de consulta médica, vindas dos mais diversos municípios do interior do Estado.

Certamente, não é uma visão alentadora. E, como não poderia deixar de ser, rapidamente organizou-se um mercado em torno dessa massa de gente: ambulantes vendendo lanches e todo o tipo de bugigangas, restaurantes “conveniados” com os condutores dos veículos que devem receber algum “por fora” para indicar seus serviços, facilitadores de senhas para consultas e outros serviços do gênero.

Situação idêntica acontece nas vizinhanças do Grupo Conceição, dos hospitais da Santa Casa e do Hospital da PUC. A situação para os moradores de Porto Alegre não é diferente. As filas são uma constante, a falta de medicamentos de uso continuado é permanente e o tempo de espera é ultrajante.

São pessoas tratadas sem o mínimo de respeito e dignidade. Precisava ser assim? O poder público não poderia resolver essa situação de tal forma que as pessoas tivessem um acesso digno ao sistema (dito público) de saúde? O que é necessário para que isso seja feito? Falta conhecimento técnico ou capacidade gerencial? Não creio que sejam essas as razões para a permanência desse estado de coisas.

Olhando mais de perto, pode-se facilmente perceber que essa desordem ou, se preferirem, essa desorganização aparente, que impede o acesso direto e imediato ao sistema de saúde, joga água no moinho das centenas de seguradoras de saúde privada existentes no país. Assim, fica mais fácil de compreender. A esparrela da falta de recursos governamentais é simplesmente ridícula. De janeiro a abril deste ano foram arrecadados R$ 256.889 bilhões pelo governo federal. A soma total arrecadada, acrescentando os Estados e Municípios é de R$ 456.481 bilhões de reais. Não tenho dúvidas de que com esse dinheiro todo, por mais PACs que inventem, dá para custear uma saúde digna para a população. Basta o governo eleger a saúde como uma prioridade efetiva, real, e não, como diz o ditado “da boca para fora”. De olhar para a população e resolver um dos problemas mais dramáticos que ela enfrenta nos dias atuais.

Lucio Barcelos - Médico Sanitarista
Maio de 2010.

domingo, 9 de maio de 2010

Uma decisão inacreditável.

A decisão do Supremo Tribunal Federal em relação à revisão da Lei da Anistia é uma ofensa ao povo brasileiro. É inconcebível que existam cidadãos que possam cogitar do perdão ou esquecimento de práticas de tortura e outras sevícias que resultaram na morte e/ou no desaparecimento.de centenas de presos políticos no Brasil. Aliás, a tortura é um ato repugnante, contra a humanidade, seja ela praticada contra presos políticos ou contra presos comuns.

Eu fui preso político em 1970 e em 1976. Passei mais de 01 ano na prisão (no DOPS, em uma Ilha do estuário do Guaíba, que serviu de prisão aos presos políticos durante um período e no Presídio Central). Fui posto nu, vendado e levei choques elétricos. Fui julgado pela 1ª Auditoria da 3ª CJM (Justiça Militar Federal). Numa primeira vez fui considerado não culpado e numa segunda vez (eu sou persistente) fui condenado. O que aconteceu com a grande maioria dos presos políticos foi milhões de vezes pior do que aquilo pelo que passei. Muitos foram torturados por meses a fio, ficaram mutilados física ou mentalmente, muitos foram mortos e de muitos até hoje não se sabe o destino, por mais que as famílias tentem encontrá-los, para dar-lhes um sepultamento digno.

Eu não sou revanchista. Nunca fui. E tenho convicção de que em sua ampla maioria os presos políticos não o são. Eu só penso que os torturadores devem vir à luz do dia, devem ser identificados e julgados. Por um tribunal civil, em tempos de democracia. O que eu reivindico, e imagino que deva ser a reivindicação da maioria dos presos políticos, é, nada mais, nada menos que se faça justiça. Se nós fomos presos, julgados e condenados pelas leis da ditadura, nada mais justo do que querer que os torturadores, independente de se pertenciam às forças armadas ou a polícia (DOPS) sejam identificados e julgados pelas barbáries que praticaram. Eles agiram na escuridão, protegidos pelo aparelho de Estado repressor. Os presos políticos, em sua maioria jovens estudantes ou trabalhadores não tinham nada a seu favor a não ser sua disposição de lutar contra a ditadura e o apoio de uma parcela da população. Que vivia amedrontada e calada por essa mesma repressão.

Não se trata de revanchismo. Trata-se de um ato de redenção. De a nação brasileira acertar suas contas com o seu passado. Essa é uma chaga muito profunda, que afeta até hoje a forma como funciona e se move nossa sociedade. Julgar os torturadores é um ato de libertação da nação brasileira. Só assim ela poderá se ver por inteiro, sem nada a esconder ou do que se envergonhar.

Lucio Barcelos
Médico Sanitarista
Maio de 2010

terça-feira, 4 de maio de 2010

O dilema da Ficha Limpa

Muito se tem debatido em torno da chamada “Ficha Limpa”, Projeto de Lei Complementar 518/09 (que pode ser votado hoje – 04/05/2010 – na Câmara dos Deputados) cujo objeto, em síntese, é a inelegibilidade de candidatos com condenações judiciais.

O argumento da maior parte dos seus críticos gira em torno da inconstitucionalidade do projeto (por ser afrontoso ao princípio da presunção da inocência). Segundo tal princípio, estampado na Constituição da República, somente pode ser considerado culpado o cidadão que tiver em contra si sentença penal condenatória transitada em julgado. Explicando de forma mais simples, uma condenação judicial, de natureza criminal, da qual não caiba mais recurso para qualquer instância.

O projeto não me parece, prima facie, desagradável, e a despeito de efetivamente padecer do vício que lhe imputam – inconstitucionalidade –, este não é, para mim, motivo suficiente a bani-lo.

Primeiramente, entendo que o argumento de constitucionalidade ou inconstitucionalidade de alguma norma, em discussão travada no seio de um partido socialista, não é o mais próspero. A Constituição da República de 1988 foi elaborada e promulgada por Assembleia Nacional Constituinte burguesa, ou seja, por um Estado burguês. Defendê-la, portanto, nada mais é do que defender o status quo deste Estado liberal, máxime em se tratando de regras atinentes a direitos políticos. Defender esse projeto não deixa de ser também uma defesa de uma instituição burguesa, qual seja, o seu parlamento, mas, considerando que no horizonte sequer se vislumbra o ruir do Estado liberal (ainda mais se levarmos em conta que o PSOL faz somente o jogo institucional e o MST e outros movimentos sociais estão calados e inertes), a defesa da ideia se afigura adequada.

Ainda, eventual inconstitucionalidade do projeto da “Ficha Limpa”, por si só, não me faz contrário ao projeto. Isso porque a Constituição é afrontada desde a sua promulgação, em outubro de 1988, e na grande maioria, senão em todos os casos, contrariamente aos interesses dos menos favorecidos. Um exemplo bastante claro e gritante é a limitação dos juros a 12% ao ano. Regra expressa, definitiva e cristalina como água. Todavia, o sistema financeiro/bancário jamais respeitou a Constituição quanto a esse aspecto. Essa limitação de juros foi extirpada da Constituição em 2003, mas nos 15 anos que permaneceu vigente, jamais foi respeitada, desrespeito esse sempre referendado pelo STF.

Então, se a Constituição vem sendo violada desde sempre, que o seja em prol de um projeto anticorrupção também. É certo que esta posição é incontornavelmente pragmática, mas diante desse mal que sangra desenfreadamente o erário, permitindo a eleição de políticos ímprobos, desonestos e desqualificados, tenho que, como já dito, é bastante apropriado o projeto.

Apenas a título de informação, o parecer da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, quanto ao Projeto de Lei da “Ficha Limpa”, é no sentido da plena constitucionalidade do projeto.

Por fim, não me parece que a “Ficha Limpa”, ao ampliar o leque de inelegibilidades, seja um limitador da esfera de discussão política, como o é, por exemplo, a denominada cláusula de barreira. A construção desse diálogo deve partir não só dos movimentos institucionais – processo eleitoral e parlamento – mas também do PSOL e demais partidos de esquerda e, principalmente, dos movimentos sociais, hoje, infelizmente, em estado de letargia.

De qualquer forma, a discussão é vazia, pois o projeto dificilmente vai passar no Congresso (corporativismo, sabemos como é, os nossos nobres parlamentares não vão querer barrar as próprias candidaturas).

Guilherme Barcelos
Bacharel em Direito
Analista Judiciário do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região