segunda-feira, 1 de agosto de 2011

01 de agosto de 2011 - ZH|

ARTIGOS

Uma crise programada, por Lucio Barcelos*

É persistente o noticiário acerca dos índices de superlotação dos serviços de emergência, nos hospitais públicos e em alguns privados, de Porto Alegre.

Acho constrangedor voltar a me manifestar a respeito de um assunto que já deveria ter sido resolvido há muito tempo. Suponho que os gestores públicos devam sentir-se muito mais constrangidos pela sua inoperância, incapacidade e aparente falta de poder de decisão sobre algo que afeta a vida de milhares de pessoas (pobres, a grande maioria), diariamente.

Refiro-me à aparente ausência de poder de decisão porque, tanto quanto conheço, o gestor público tem o poder, facultado pela legislação do SUS, de intervir e/ou requisitar leitos nos hospitais privados (filantrópicos ou não) contratados pelo sistema ou não, e garantir internação imediata para aqueles cidadãos que estão sofrendo nos corredores das emergências. Alternativamente, existe a possibilidade de comprar leitos privados, por um tempo limitado, nesses mesmos hospitais. Trata-se de uma situação emergencial, que justifica plenamente essa atitude, tendo em vista o interesse público. Que, até prova em contrário, sobrepõe-se ao interesse privado. Foi isso que fizemos no período em que fui secretário da Saúde de Porto Alegre, quando ocorreu o que a imprensa convencionou chamar de “crise das UTIs”. Partimos, imediatamente, para a compra de leitos de UTI, disponíveis e reservados para os pacientes detentores de planos de saúde ou pacientes particulares, nesses hospitais. Com essa medida, solucionamos a crise. E, num segundo momento, ampliamos os leitos públicos de UTI.

A superlotação das emergências é, antes de qualquer coisa, a expressão da falência do sistema público. Só que não é uma falência qualquer, inevitável. É uma falência orquestrada, reveladora da submissão e vassalagem do sistema aos interesses privados. Rede básica ineficiente e insuficiente, combinada com superlotação de emergências, é consequência de um sistema público destroçado com o objetivo de justificar sua privatização. O anúncio da entrega do hospital da Ulbra para a mantenedora do Hospital Divina Providência e a exasperante lentidão para a construção dos 90 leitos do Hospital da Restinga confirmam esse processo.

O problema é que, hoje, a situação é outra. Bem pior. Existe uma pressão incontrolável do setor privado, com a inestimável colaboração do setor público, para privatizar todo o sistema de saúde. Não é por acaso que os espertos do setor privado “descobriram” o filão da atenção básica, e hoje brigam pela introdução das chamadas organizações sociais, Oscips e fundações privadas nessa área. O setor público constrói as unidades básicas, contrata o pessoal, e a iniciativa privada “gerencia” o sistema. Não é uma maravilha? É o chamado “capitalismo sem riscos”. Aliás, o setor privado, no Brasil, e creio que no mundo todo, nos dias atuais, só se mantém grudado nas gordas tetas do Estado. O bom e velho BNDES que o diga.

*Médico sanitarista, diretor-geral do HPSP