sábado, 11 de setembro de 2010

A saúde pública e os leitos hospitalares.

Das duas uma. Ou eu não aprendi nada em 30 anos de dedicação à área da saúde pública, ou existe algo de muito errado na condução do processo de solução para o fenômeno danoso da superlotação das emergências, via aumento de leitos hospitalares.

Nunca ouvi dizer que o problema grave da superlotação das emergências tivesse qualquer relação ou correlação com o número de leitos hospitalares disponível para o distinto público.
Sucintamente, o que me ensinaram foi o seguinte:

1 – a explosão das emergências está diretamente relacionada com a baixa cobertura da rede de atenção básica ou atenção primária, (hoje propagada através do modelo da Estratégia Saúde da Família);

2 – essa explosão está também relacionada com o reduzido poder de resolução, da já mencionada baixa cobertura populacional da atenção básica, que se dá pelas formas precárias de contratação dos trabalhadores e dos baixos salários pagos aos mesmos;

3- essa situação de anomalia ou de disfunção do sistema empurra milhares de pessoas para os serviços de emergência. Não que elas sejam portadoras de algum quadro que caracterize uma emergência médica efetiva. Apenas que elas não são tolas. Elas perceberam que as unidades básicas, na maior parte das vezes, não resolvem seus problemas, que elas tem que ir na madrugada para uma fila, competir por uma ficha para uma consulta clínica, onde o médico vai solicitar algum exame, que demorará mais alguns meses para ser realizado, e ela terá que retornar e remarcar uma outra consulta para que o médico “traduza” o resultado do exame e lhe prescreva algum tratamento, caso necessário. É óbvio que nessas circunstâncias de espera vexatória e desrespeitosa, o cidadão elege uma emergência e, se tiver que esperar 08 ou 10 horas para ser atendido, paciência. Ali, ele sabe que o sistema, de uma forma distorcida, se “integra”: consulta, exame laboratorial, tratamento;

4- estudos mostram que mais de 50% daqueles que estão nas emergências poderiam ter seus problemas resolvidos na rede ambulatorial, se essa funcionasse efetivamente;

5 – outros estudos também provam que, se houver uma cobertura de 80% da população pelas equipes de atenção básica e, se essas equipes forem qualificadas e resolutivas, elas resolverão mais de 80% da demanda que recebem. Isto é, nestas condições, restariam para as emergências hospitalares, pronto atendimentos e Hospitais de Pronto Socorro, os casos que realmente necessitam de assistência imediata;

6 – O percentual de cobertura populacional pela atenção básica no Rio Grande do Sul é de sofríveis 39%. E, apesar de eu não conhecer nenhuma avaliação de sua efetividade, arriscaria a declarar, conhecendo a realidade do sistema básico de Porto Alegre, que a qualidade do atendimento é, sendo generoso, precária, quando não ineficaz. As filas de centenas de cidadãos na madruga, em frente aos postos de saúde, são um atestado disso;

7 – Dessa forma, não serão mais 100, 200 ou 300 leitos hospitalares que farão a diferença, naquilo que se refere ao funcionamento das emergências, ou ao funcionamento do sistema como um todo. Vale o mesmo raciocínio para as UPAS (Unidades de Pronto Atendimento). Se elas não estiverem vinculadas a uma expansão imediata e concomitante da rede básica, pode esquecer. Serão mais um trambolho, jogando dinheiro público pelo ralo;

Atenção, não estou defendendo que não se reativem os leitos dos hospitais Independência e Luterano. Estou afirmando que mais leitos não implicam, necessariamente, em uma melhora do funcionamento de um sistema público, integrado de saúde! A única alternativa efetiva é expandir e qualificar a atenção básica. Já!!!

Lucio Barcelos
Médico Sanitarista e Ex-Secretário de Saúde de Porto Alegre
Setembro de 2010.

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