terça-feira, 4 de maio de 2010

O dilema da Ficha Limpa

Muito se tem debatido em torno da chamada “Ficha Limpa”, Projeto de Lei Complementar 518/09 (que pode ser votado hoje – 04/05/2010 – na Câmara dos Deputados) cujo objeto, em síntese, é a inelegibilidade de candidatos com condenações judiciais.

O argumento da maior parte dos seus críticos gira em torno da inconstitucionalidade do projeto (por ser afrontoso ao princípio da presunção da inocência). Segundo tal princípio, estampado na Constituição da República, somente pode ser considerado culpado o cidadão que tiver em contra si sentença penal condenatória transitada em julgado. Explicando de forma mais simples, uma condenação judicial, de natureza criminal, da qual não caiba mais recurso para qualquer instância.

O projeto não me parece, prima facie, desagradável, e a despeito de efetivamente padecer do vício que lhe imputam – inconstitucionalidade –, este não é, para mim, motivo suficiente a bani-lo.

Primeiramente, entendo que o argumento de constitucionalidade ou inconstitucionalidade de alguma norma, em discussão travada no seio de um partido socialista, não é o mais próspero. A Constituição da República de 1988 foi elaborada e promulgada por Assembleia Nacional Constituinte burguesa, ou seja, por um Estado burguês. Defendê-la, portanto, nada mais é do que defender o status quo deste Estado liberal, máxime em se tratando de regras atinentes a direitos políticos. Defender esse projeto não deixa de ser também uma defesa de uma instituição burguesa, qual seja, o seu parlamento, mas, considerando que no horizonte sequer se vislumbra o ruir do Estado liberal (ainda mais se levarmos em conta que o PSOL faz somente o jogo institucional e o MST e outros movimentos sociais estão calados e inertes), a defesa da ideia se afigura adequada.

Ainda, eventual inconstitucionalidade do projeto da “Ficha Limpa”, por si só, não me faz contrário ao projeto. Isso porque a Constituição é afrontada desde a sua promulgação, em outubro de 1988, e na grande maioria, senão em todos os casos, contrariamente aos interesses dos menos favorecidos. Um exemplo bastante claro e gritante é a limitação dos juros a 12% ao ano. Regra expressa, definitiva e cristalina como água. Todavia, o sistema financeiro/bancário jamais respeitou a Constituição quanto a esse aspecto. Essa limitação de juros foi extirpada da Constituição em 2003, mas nos 15 anos que permaneceu vigente, jamais foi respeitada, desrespeito esse sempre referendado pelo STF.

Então, se a Constituição vem sendo violada desde sempre, que o seja em prol de um projeto anticorrupção também. É certo que esta posição é incontornavelmente pragmática, mas diante desse mal que sangra desenfreadamente o erário, permitindo a eleição de políticos ímprobos, desonestos e desqualificados, tenho que, como já dito, é bastante apropriado o projeto.

Apenas a título de informação, o parecer da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, quanto ao Projeto de Lei da “Ficha Limpa”, é no sentido da plena constitucionalidade do projeto.

Por fim, não me parece que a “Ficha Limpa”, ao ampliar o leque de inelegibilidades, seja um limitador da esfera de discussão política, como o é, por exemplo, a denominada cláusula de barreira. A construção desse diálogo deve partir não só dos movimentos institucionais – processo eleitoral e parlamento – mas também do PSOL e demais partidos de esquerda e, principalmente, dos movimentos sociais, hoje, infelizmente, em estado de letargia.

De qualquer forma, a discussão é vazia, pois o projeto dificilmente vai passar no Congresso (corporativismo, sabemos como é, os nossos nobres parlamentares não vão querer barrar as próprias candidaturas).

Guilherme Barcelos
Bacharel em Direito
Analista Judiciário do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região

Um comentário:

  1. Fabrício Bittencourt Nunes5 de maio de 2010 às 18:02

    É uma ótica defensável, companheiro. Penso, contudo, que o projeto atinge garantias individuais (o estado de inocência, no caso) que são desejáveis mesmo em um Estado Marxista, pela combinação da democracia real com o respectivo suporte material que contém. Se esse conjunto constitucional de promessas não se realiza, podemos debitar ao meio burguês onde foi gestado e é sonegado - claro. O que não significa indiferença com ele. Podemos (e devemos) denunciar o descumprimento da Constituição. Mas não temos o direito à indiferença com postulados fundamentais às possibilidades do socialismo real. A presunção da inocência, me parece, é um deles. Sem o qual poderemos fletar perigosamente com posições stalinistas bem conhecidas e danosas...
    A pior parte do "ficha-limpa" é o que subjaz ao projeto: a idéia de introjetar no imaginário popular a política como uma espécie de pecado anunciado. Corremos o risco, com isso, de algum grupo acabar sugerindo concurso público para o parlamento, por exemplo. Um cenário análogo - sabemos - seria o deleite do establishment. E estreitaria ainda mais o espaço que ainda podemos ocupar no enfrentamento.
    Seja como for, Guilherme, a tua abordagem é interessante, coerente e, sobretudo, capaz de induzir à reflexão.

    abs.

    Fabrício

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